terça-feira, 19 de junho de 2012

INTOLERÂNCIA NÃO COMBINA COM RELIGIOSIDADE


A religiosidade que oferece o céu é a mesma que pode nos lançar no poço da ignorância e do preconceito. Seja fiel sem fanatismo. Sem aqueles extremos de quem julga já não viver neste mundo. Lembre-se de que o provável paraíso prometido pelo possível Deus é futuro, e o planeta no qual vivemos é presente. Façamos deste planeta um lugar melhor para se viver, e sobretudo, amemos o próximo, ainda que os conceitos, ideologias e crenças do próximo sejam bem distantes dos nossos.
Admita que, se Deus existe, ninguém sabe tudo sobre Ele. Talvez ninguém saiba nada, e neste caso, todos estarão errados; logo, incluindo você e suas convicções. Pode ser também que todos estejam certos, ao seu modo, e todas as vertentes de religiosidade sejam rios que desaguarão no mesmo oceano. A única certeza que tenho é a de que os pretensos donos da verdade pecam por arrogância.  Cada um pela pretensão de que seu grupo é o único a entender o que está escrito em algum livro que supostamente rege a história deste universo. Universo, aliás, que a nossa estupidez resumiu ao mundo, ao planeta terra, no que tange a vida inteligente ou viável não espiritual.
Serei também arrogante, se acreditar que o meu ateísmo, talvez agnosticismo (seja qual for o nome, por ter que haver) me torna especial. Mais do que todos os seguidores de qualquer outro pensamento, posso estar errado. Eu e todos os poucos que pensam da mesma forma estamos na contramão da normalidade globalizada. Sendo assim, são enormes as chances de sermos nós os loucos.
Pensemos no ser humano como a mesma espécie recheada por diferenças que a tornam, por isso mesmo, fantástica. Um organismo cujas partes ou órgãos precisam mesmo ser diferentes, para um bom funcionamento.
Harmonia se opera com diversidade. Sintonia é sinfonia. São inúmeros os instrumentos tocando as mesmas canções. Não deixemos que a nossa ideia tirana de concerto acabe desconcertando os outros; a humanidade restante. Tal tirania pode prejudicar, fatalmente, o belo e grande show da vida. 

O PRECONCEITO E A NEGAÇÃO


A cada vez que o negro chama o branco de macarrão sem molho, manifesta preconceito racial. No entanto, não tem o mesmo peso de quando o branco classifica o negro como picolé de asfalto. Isso não tem a ver com o tamanho momentâneo da ofensa, e sim, com todo um contexto histórico e social. É o negro, e não o branco, o grande ofendido. Ele foi escravizado; é vítima secular da segregação que lhe nega os melhores espaços e oportunidades. Vive uma rotina de se impor e superar para sobreviver. Provar de todas as formas os méritos que tem. Esforçar-se diariamente muito mais do que o branco (leia-se não preto), para obter conquistas que esse outro obtém sem precisar fazer tanto.
Nos debates e seminários sobre africanidades é inacreditável a negação do preconceito racial, com os mais infundados, porém veementes argumentos. Um deles é de que o negro discrimina a si próprio, porque namora com louras, por exemplo. Ou seja; o branco é generoso e sem preconceito se namora com negras, mas os negros não podem namorar com brancas ou louras, caso não queiram ser taxados de preconceituosos.
A dita sociedade branca, no Brasil, só aceita o negro que a cultue abrindo mão da própria cultura, especialmente no que tange o vestuário, as tradições religiosas e festivas e, em grande parte, a musicalidade. Querem o “negro de alma branca”. Essa mesma sociedade rebate o sistema de cotas e até convence alguns negros a fazê-lo. Classifica o direito como paternalismo, sem reconhecer a dívida histórica de um país que não quer pagá-la espontaneamente, sendo necessário que o faça por lei.
Quando a Princesa Isabel assinou a lei áurea garantindo a libertação dos escravos, nenhum político da época se preocupou em propor e insistir convincentemente na criação de leis que assegurassem aos recém-libertos uma inclusão no mercado de trabalho que era deles, mas em regime de escravidão. Nada foi criado para lhes garantir quaisquer direito e perspectiva; qualquer item pelo qual pudessem ser cidadãos. Ao contrário, tratou-se logo de apressar o embranquecimento da classe trabalhadora com a mão-de-obra italiana. O trabalho, quando escravo, era dos negros. Ao se tornar devidamente remunerado, passou a ser dos brancos; com todos os direitos da época.
Também é balela quando bradamos que todos nós, brasileiros, somos negros, como justificativa para negação de racismo e desqualificação da lei de cotas. Não somos. O Brasil é um país de mestiços; corre nas nossas veias a mistura do sangue africano com o indígena e o europeu. Somos brancos, morenos, pardos, negros. Com isto, o nosso preconceito é nominalmente racial ou étnico, mas, especificamente ou na prática, é de cor. Neste país onde o louro é adorado e o moreno bem aceito, o preto - assim como o índio – é preterido; excluído; discriminado. 
Há entre nós, todas as formas de preconceito: Racial, religioso, sexual, pátrio, social e tantos outros... Contudo, nenhum tipo de preconceito é mais pernicioso do que o de cor, pelos seus disfarces, as suas inconfidências, a velação e o eufemismo. Um dos exemplos dessa natureza perniciosa do preconceito à brasileira é a constante citação, pelos não pretos, dos exemplos pontuais de pretos que ascenderam socialmente, como prova de que há igualdade. Só esses pretos sabem o que tiveram de superar, provar, vencer, impor e sobrepor infinitamente mais do que os brancos, para serem bem sucedidos.
Acho que a negação é tão criminosa quanto o próprio preconceito. É essa negação que dificulta os processos de tentativa de igualdade ou vitória contra os vícios que vieram de lá, do Brasil colônia. Vícios de natureza europeia que blefam contra a afrodescendência e nos mantêm na ignorância. 

O CRISTO ERRADO


Meu silêncio é discurso de alguma esperança
que desperta e reage a qualquer frustração,
sei florir na estação de geadas ou secas
e forjar minha herança de vida excedente...
Quando pensam que fico estou longe daqui;
abro sempre um caminho que soa improvável;
minha carne já sabe se livrar do espinho
que parece chegar nos desvãos de minh´alma...
Outra vez me refaço da queda sofrida;
pego a vida no pulso, no punho cerrado;
ponho a sombra de lado e recupero a luz...
Quem achou que podia interromper meu sonho,
me deixar numa cruz e recolher o tempo,
perdeu tempo investindo sobre o Cristo errado...

DEUS MORTO


Era noite cerrada e silenciosa na cidade pacata onde Janaína morava. Tudo começou quando a moça mal pegara no sono, depois de ler um texto religioso longo e complexo, que a impressionara muito. Tratava-se de um artigo em que o amor do ser humano pelo possível Deus era questionado em sua sinceridade. 
...   ...   ...   ...   ...
De um grande susto seguido por um salto, Janaína corre para fora quando escuta um estrondo ensurdecedor, seguido por uma espécie de terremoto. Com assombro, ela percebe que o seu pequeno quintal se transformara num imenso deserto rochoso todo rachado pelo impacto, e sobre ele, um corpo gigantesco. Parecia humano, mas era gigantesco. Ainda respirava, queria dizer alguma coisa e seu esforço o fazia rugir.
Em poucos minutos uma insondável multidão se formou em redor do gigante. Não eram apenas pessoas dos arredores. Vinham de todos os lados do planeta e falavam todas as línguas. Parecia que aquilo fora preconizado e a humanidade já estava mesmo se encaminhando para lá. Sabia do que se tratava. 
Era Deus, a criatura imensa. O Criador de tudo estava moribundo. Sua boca sangrava; os olhos tremiam. A multidão estava incrédula, desencantada e temerosa com aquela cena inacreditável. Como se não bastasse, Deus começa a diminuir e envelhecer num processo acelerado, até que se torna um velhinho indefeso e confuso. Com tal agravante, a esperança universal de um mundo melhor tem seu fim. Todos ficam atônitos, desamparados e não sabem o que fazer. Janaína, impassível, somente assiste. Sente-se vazia, em desespero, com aquela sensação de abandono que muitas vezes assola qualquer pessoa, mas no seu caso e naquela hora, em proporção infinita. Como ninguém saberia explicar.
O velhinho estende a mão, pedindo ajuda. Ninguém se mexe. A multidão está em choque. Deus nem consegue falar, e pelo visto, logo não emitirá qualquer som. Não esboçará qualquer gesto. Será seu fim, quiçá o fim de tudo. Criador, criação e criaturas, tudo se perderá no abismo, como prova de que os esforços divinos para salvar e preservar a humanidade foram todos em vão. De nada valeram as demonstrações de amor e força; o envio de seu filho Jesus Cristo para morrer numa cruz; os milagres e as maravilhas que se operaram para enternecer e sensibilizar o ser humano a desejar o bem.
Mas cadê o amor do homem pelo Criador? Afinal de contas, havia ou não amor? Será que os louvores, as preces, os sacrifícios, romarias e tudo o mais foram falsos? Se naquele momento inacreditável Deus era um velhinho indefeso e prestes a morrer, não importava, não deveria importar, pois se tratava Dele, a quem todos os seres devem tudo, especialmente a vida! Uma tamanha ingratidão tratar assim o pobre Deus.
Quando põe fim à ponderação e se propõe a dar um basta naquela indiferença, conclamando aquele povo a pelo menos demonstrar sua solidariedade ainda que sem sucesso, Janaína vê o pior: O demônio, com toda a força, pompa e majestade, surge mais gigantesco do que o próprio Deus, quando caiu. Gigantesco, forte, ousado, vivo e com um grande exército. Chega disposto a enfrentar os anjos que porventura desçam à terra para proteger o Criador. Também disposto, é claro, a exterminar quem conteste o seu poder e ouse contrariá-lo; mostrar-se oposto ao reino das trevas por ser estabelecido.
Neste momento, a multidão se bandeia para o demônio. Sequer olha para o Deus velhinho. Ele já não pode fazer nada pelo mundo e seus habitantes, pelo espaço sideral, o reino dos céus nem por si próprio. O poder e a força mudaram de lado. Ninguém adora os vencidos, os desafortunados, por mais que mereçam honra.
Janaína, não. Ela não é assim. Resolve que não vai abandonar o velhinho.  Morrerá com ele, se nem adianta lutar. Deus  é tudo para ela. Mesmo assim debilitado, moribundo, próximo de seu último suspiro. Não adianta lutar, isto é certo, mas a moça quer luta. Pega Deus com um braço, para levantá-lo, e com o outro, apanha pedras no chão; atira contra o inimigo. No exato momento, incontáveis flechas a atravessam. Ela cai de joelhos, abraçada ao Velho Deus. Pouco antes de morrer, sussurra em seu ouvido palavras de gratidão pela vida, o amor, a família que teve, até mesmo os filhos que não poderá mais criar.
...   ...   ...   ...   ...
A resposta divina chegou tarde. Janaína já despertava. No horizonte, o sol dava notícias de que o mundo estava salvo... Pelo menos por enquanto. Ela corre para fora, não antes de reler a última frase do artigo em suas mãos: Você de fato ama Deus ou está do lado mais forte? 

VIVA PRA MIM


Em um ponto que se faz visível por tamanha saudade, uma força me ampara; dá paz; conforta. Ela paira sobre o silêncio de uma verdade que afago e que deu asas ao sonho, tornando-o capaz de visitar distâncias que nunca imaginei.
Nesse ponto entre as estrelas existe um anjo. Ele se compõe de um gás muito mais luzente. Sua divindade supera o que posso crer e contém uma realidade que o só o amor possibilita. Esse anjo recompõe seu brilho a cada bem que me causa, e por ele, recomponho a magia de uma idade cheia de encanto. 
A cada dia renasço para ver seu brilho mais uma vez. Para jamais me perder do  sentimento e da condição de filho. Guardar sempre a certeza de que sou amado. Muito amado, com todas as mazelas da minha natureza torta.
Existe um canto em que chego por saber voar... Voar sem limite nem temor... O suficiente para saber que ela não morreu. Está dentro de mim, onde fica esse ponto que descobri no infinito. No silêncio de uma nostalgia profunda.
Saudade boa. Sentimento reconfortante. Sabe como acalmar meu coração e suturar a ferida cuja mágoa contorno. Quando já não posso tocar o rosto, abraçar o corpo frágil de minha mãe, sou feliz porque a tive. Porque a tenho, não como tive, mas na certeza de que a sua energia me rege. 

ADÃO, EVA E A COBRA


É mentira que a cobra tenha tentado Eva para pecar. Na verdade, foi Eva quem pressionou a cobra fazendo-a contar segredos do bem e do mal. A fêmea de Adão sabia que aquele ser até então alado e inofensivo tinha liberdade para voletear sobre todos os pontos proibidos do paraíso e conhecer seus mistérios.
Curiosa como só ela, Eva se aproveitou de um momento em que a cobra pairava sobre uma flor: Deu o bote. Pegou-a pelas asas e ameaçou feri-la caso não lhe dissesse o que desejava saber. Foi assim que a mulher tomou ciência do bem e do mal, mas sobre todas as coisas, de como seduzir seu homem. No caso de Adão, ele andava entediado - e nem se dava conta - com tantas árvores, flores e animais em perfeita sintonia.
Também é mentira o que tanta gente afirma sobre o fruto proibido, que gerou a inquietação do casal e provocou a sensualidade, o desejo consciente de sexo. Não foi a maçã, e sim a manga. Quando Adão viu a fruta já descascada por Eva comparou-a com a região genitália da companheira. Maliciosamente, Eva lhe ofereceu a manga, e quando ele a chupou, quis repetir o ato no alvo de sua comparação. Gostou muito, sentiu prazer como nunca e popularizou a primeira variação sexual do ser humano. 
Por causa de tudo isso, Adão e Eva já não cabiam no paraíso, ou Jardim do Éden. Foram expulsos e nunca mais puderam retornar. Para o criador de tudo, o pecado supremo do casal não foi a desobediência. Nem mesmo a curiosidade. Foi a descoberta ou o despertar do prazer sexual, que mais tarde faria homens e mulheres capazes de tamanhas vilanias. O sexo ingênuo, para fins específicos de procriação protegeria para sempre, a espécie, dos efeitos adversos, a exemplo da aids.
Quanto à cobra, também expulsa do Jardim - convenhamos, injustamente -, veio a se tornar venenosa e rastejante, pois ainda perdeu as asas. Também pudera: Imagine uma revoada, por exemplo, de najas ou cascavéis nos expondo ao perigo de uma vingança em massa.  

HONESTIDADE SEM MEDO


Só por força de lei ou religião, a honestidade será sempre falsa. Quem aprende a não roubar tão apenas porque a lei proíbe, a polícia “pega” ou Deus castiga, pode até não fazê-lo, mas apenas por medo ou insegurança. No dia em que tiver certeza da impunidade, certamente o fará. É o que vemos acontecer diariamente com políticos, policiais, empresários e juristas, por exemplo, além dos ladrões comuns, no caso, aqueles que às vezes acabam presos. De qualquer forma, o caráter desonesto aflora quando a pessoa se vê acima da lei – como fazem os que deveriam trabalhar por ela – ou abaixo o suficiente para não ser vista.
Precisamos dizer aos que dependem de nosso exemplo e orientação, que a desonestidade avilta o ser humano. Quem a comete, ainda que não seja punido com prisão, processo, cassação, multa ou inferno, vai se juntar a outros desonestos para promover a ruína da sociedade. Uma sociedade na qual viverão – ou já vivem – seus filhos, que legarão aos netos e futuras gerações. Eduquemos nossas crianças para serem cidadãos honestos por formação; caráter; desejo de um mundo melhor, igual para todos. Um mundo no qual a felicidade seja um bem comum acima dos bens a qualquer custo.
Ao falar da desonestidade, creio não excluir outros crimes. De algum modo, ela passa pelos demais, porque pessoas honestas, tanto quanto não roubam valores financeiros e materiais, não subtraem vidas; não roubam esperanças; não atentam contra honras, pudores, éticas, ideologias e patrimônio público. Tampouco lesam a vez do próximo nem ocupam espaços que não lhes pertençam por legitimidade. Por isso nunca matam nem mentem. Muito menos se deixam subornar. Não traficam drogas ou influências. Resistem à tentação do “caixa dois”, ao enriquecimento ilícito, às facilidades tortas de qualquer natureza e aos mecanismos de humilhação, coação e ludíbrio sobre os mais simples.
Criemos assim os nossos filhos: Livres do medo e da intenção obscura ou sonsa do crime. De tal modo que eles não queiram cometê-lo ainda que certos do “sucesso”. Se dissermos que o bem é sempre recompensado, que o mal jamais triunfa e todo fora-da-lei acaba na cadeia, certamente seremos questionados sobre tantos criminosos, especialmente ocupantes dos poderes constituídos, que desconhecem punição e acumulam cada vez mais poderes, riquezas e até mesmo admirações distorcidas.
Que todos aprendam a desprezar o sucesso dos corruptos; a força dos violentos; o poder dos maus. Sobre todas as coisas, a covardia dos que se encorajam com a desvantagem do próximo e brilham sobre a desgraça de um povo.

CONSOLO DA MÃO


No silêncio das horas ecoa um sermão
que não quero escutar; confesso, todavia,
rompe todas as capas que vestem meu não
e transforma em eterna esta hora tardia...


Se me toco nas trevas da noite vazia,
perco tempo; esperança; desperdiço mão;
queimo todos os panos desta fantasia
de quebrar o vitral da minha solidão...


É na tua miragem que me tomo inteiro
pra comer o teu gosto e respirar teu cheiro;
derreter sobre a colcha um prazer doentio...


Nas caladas da noite reluto e pereço;
minha mão se consola no velho endereço
que também a consola pra conter meu cio...

PROFETIZADO NAS ESTRELAS


A tecnologia cada vez mais avançada realiza os sonhos da humanidade num ritmo cada vez mais veloz. A contrapartida são os efeitos colaterais do avanço, realizando a reboque os pesadelos expostos por quem enxerga de longe a face turva desse deslumbramento universal.
Quase nada é impossível nessa vertigem tecnológica em busca de soluções para o ser humano. O contraste pernicioso está justamente na ausência de soluções eficazes para os danos que se contrapõem aos benefícios, muitos até desnecessários ou fúteis, trazidos por tantas descobertas.
Todas as coisas que aspiramos e tememos são tão prováveis, que nem há mais ficção. Tudo agora é profecia e não se realiza exatamente: cumpre-se. Parece que o homem não inventa, e sim, copia o que está escrito nas estrelas, legível como nunca.
Quisera estivesse escrito em alguma estrela que brinca de esconde-esconde, a fórmula capaz de cicatrizar a ferida na camada de ozônio. De curar as doenças e outros males da humanidade, sem efeito colateral. Salvar os rios, mares e florestas, devolvendo-lhes vigor, volume, pureza e originalidade.
Deveria, sobretudo, estar escrito nas estrelas que acordaremos todos, da falta de consciência. Saberemos progredir sem exterminar. Teremos respeito por nós próprios, pela flora e a fauna. Perceberemos que a vida é o bem supremo e deve ser desejada sobre todas as coisas; estar acima de acúmulos e conquistas materiais.
Ficaria contente se este fim de prosa fosse mais do que o fruto de minha criatividade. Fosse uma profecia. Uma cópia ou plágio do que já está lá... devidamente composto nas estrelas.

TESTAMENTO AFETIVO


Fomos tua razão; teu sentido exclusivo;
só querias a vida pra nos ver felizes;
não havia motivo pro teu coração,
que não fosse o compasso; a cadência dos nossos...
Tua grande agonia foi nos ver feridos
pela vida inclemente, os espinhos da estrada,
nossos dias de nada que fizesse jus
à menor esperança de um tempo melhor...
Mas venceste os agouros e seus fundamentos;
teus rebentos cresceram, tornaram-se gente
que uma fila de gente apostava que não...
Sei que foste feliz, deu pra ver nos teus dias
cujas horas tardias floriram nos olhos
um orgulho deixado como testamento...

A LIBERDADE CONDUZ A VOCAÇÃO


Por ser bela e magra Celinha não tem que ser modelo, bailarina ou atriz não sendo este o seu desejo, e sim, o de sua mãe. Nada impede que a menina seja uma bela médica, professora ou química se houver vontade, apoio familiar e dedicação pessoal.
Da mesma forma, Chiquinho não tem que ser jogador de futebol para realizar o sonho do pai, que reconhece no filho as habilidades e o porte físico. Pode ser que um dia ele queira ser bailarino como Celinha talvez não queira, por decidir que será jogadora de futebol. Ou quem sabe, Chiquinho resolva ser apenas um executivo com boa forma física.
Nas artes, na literatura, no esporte, na medicina, política ou magistério são inúmeros os profissionais infelizes, incompletos ou incompetentes. Na maioria das vezes isto se deve à tirania velada ou aberta, suave e chantagista, ou dura, dos pais que sonharam por eles. Não os criaram para seguir caminhos próprios, mas os caminhos de suas frustrações. Pais frustrados, filhos também, depois os filhos dos filhos. Uma fila imensa de artistas que desejavam ser policiais. De juízes que desejavam ser artistas. Atletas que sonharam ser jardineiros. Parlamentares que só queriam publicar poemas ou executivos que dariam a vida por uma vaga de guarda florestal, quando era possível.
Nenhuma criança deve ser criada como quem terá de ser este ou aquele profissional específico, mesmo dando sinais de alguma vocação. Neste caso, é válido incentivar e prover de orientações e acompanhamento, mas não criar expectativas, cobranças nem compromissos. Talvez não seja uma vocação, porém apenas um gosto pessoal, um prazer amador passageiro ou duradouro, restrito à curiosidade. Ao passatempo. Ao exercício da intelectualidade, a preservação da saúde ou da cultura, dentro dos conceitos e limitações da faixa etária.
É bastante vezeiro na sociedade alguém atuar, compor, pintar telas, cantar ou esculpir, e fazê-lo por toda a vida, mas escolher como profissão algo totalmente oposto. Que realmente o complete, o torne realizado. É a tal veia profissional se sobrepondo à amadora.
Nesta ou naquela carreira, será bem sucedido quem não for pressionado nem exposto antes da hora. Quem puder "trocar de vocação" quantas vezes quiser, durante a infância, sem ficar marcado pelos adultos como criança que não tem personalidade. A formação do ser humano é realmente pautada por mudanças constantes.

quinta-feira, 14 de junho de 2012

O BOM SENSO DO UIRAPURU


O canário cantava para uma grande plateia, quando o melro se aproximou. Cantou também, e foi tão aplaudido quanto o canário. Este, então, estufou mais o peito e cantou mais alto. O outro não fez por menos e cantou mais alto ainda. Ambos foram aumentando seus tons, numa disputa acirrada e desagradável para os outros pássaros e as mais várias espécies que assistiam.
Em  um canto discreto, um uirapuru estava atento a tudo, sem qualquer manifestação. Mesmo sabedor de que sua voz é infinitamente mais afinada e suave do que a de todos os pássaros, ele preferiu ser expectador. Não queria entrar naquela disputa e ser mais um ego em crise na mata. Ficou triste por ver uma cena tão deprimente, mas tinha certeza de que sua interferência seria mal interpretada, gerando ainda mais conflito. Ficou ali, torcendo em vão pelo entendimento que salvaria o show.
Em dado momento, canário e melro começam a desafinar. Ficaram roucos de tanta ostentação. Em resposta, os expectadores desandaram a vaiar. As vaias eram tantas, que já nem era possível saber que havia dois pássaros se apresentando. Não bastassem as vaias, todos passam a xingar, depois a lançar coisas, visando expulsar os artistas daquele palco improvisado sobre um toco de árvore recentemente cortada por trabalhadores de  uma grande madeireira da região.
Os bichos estavam enfurecidos e frustrados. Foram assistir a um show musical que acabou em guerra de vaidades. Uma guerra que poderia atrair caçadores desejosos de aprisionar e abater muitas das espécies ali presentes, a exemplo das já citadas, além das onças, dos jacarés, elefantes, cobras e muitos outros bichos que se reuniram para prestigiar o evento.
Não houve jeito. Se não houvesse show, e a contento, canário e melro podiam ser hostilizados até às últimas consequências. Sendo assim, finalmente o uirapuru resolveu subir ao palco. Humildemente, pediu que a plateia perdoasse a ambos, não antes de elogiá-los e dizer que também fica rouco, às vezes, e todos deveriam entender. Dito isto, soltou a voz.
Foi grande, o encantamento! O que mais se via naquele trecho de mata eram bichos emocionados! Havia lágrimas em cada olhar e todas eram sinceras. Nem mesmo as lágrimas do crocodilo, naquele momento, eram lágrimas de crocodilo, se é que me faço entender. O show foi curto, pois aquela aglomeração seria perigosa, caso se prolongasse, pelas razões que já explicamos.
No fim, todos voltaram para seus cantos, tocas e ninhos, totalmente felizes e desestressados. Foi a vitória do bom senso, da presença de espírito e da modéstia de quem sequer buscava uma vitória, pois não estava concorrendo a nada... No entanto, ali estava o verdadeiro e genuíno talento. 

APRENDIZ DE GENTE


O que mais dói no menino agora vacinado, e o faz chorar, não é simplesmente a vacina. É a certeza de que tudo isso estava planejado e de nada valeu seu pranto... Sua birra.
Dói também o cinismo da promessa de que a picada não dói. A promessa, por si só, fere seu brio pela constatação da mentira. Mesmo que a mentira seja verdadeira, como no fundo não é. Não será em tempo algum.
Ao reclamar dos espinhos nos meus rumos difíceis, e do velho espinho na carne por um conflito qualquer, sei que o menino já sabe do que falo. Tem experiência. Certamente o magoa bem mais do que a fisgada, ver que foi atraído para ser traído por todos. Dói demais, doendo ou não, é não ter contado com clemência.
Tanto quanto a criança, entendo bem de ser traído. Porém, o que o menino ainda saberá é que as traições crescem. Ficam muito mais sórdidas e desnecessárias à medida que se vive. É desumano saber, mas é real.
No fim de tudo, a vacina é um aperitivo. É a simulação de um contexto que se agravará em tempos vindouros. Pobre menino... Só está começando a conhecer as pessoas. 

FAIXA INTERNA


Lutei pela vida,
mas não soube lidar
capoeira da estrada
no chão do meu ser...
Ter um bom karatê
não me trouxe medalhas
nem me fez faixa preta
de caráter.

MINHA PRIMAVERA


Se por enquanto estou no céu outono inverno, pouco importa. Meu coração está sempre aberto à luz que pode chegar... por isso nunca deixo a esperança, por mais grilos que saltem aos olhos. 
Estou à espera do amor para ser estação definitiva dos meus passos. Muitos torcem para que minh´alma jamais receba esse dom... Para que a felicidade não seja definitiva nos domínios do que há de mais profundo e reservado em mim.
Serei feliz assim mesmo... Contra todas as previsões. Receberei essa graça numa hora inesperada. Quem olhar nos meus olhos verá flores... Os que duvidam de minha primavera... verão.

AOS ELEITOS


Já tiveram seus votos, não de confiança,
mas pagou-se a fiança; estão livres do povo;
chega então de sorrisos pra risos sem dentes
dessa gente que sempre os anistiará...
Desde já se descasquem da falsa candura,
da lisura forjada, o caráter tingido,
não simulem as honras que ninguém atesta
ou a festa inviável da vã simpatia...
Vão gozar de seus luxos bem longe do lixo,
lavem bem esses lábios que beijaram rostos
de crianças com gostos amargos ou acres...
Ponham trancas nas portas de seus gabinetes,
pra ninguém arrombar essa paz criminosa
e puxar os tapetes que acobertam caos...

PAZ/PÁS

A paz não combina com este mundo... Se ela existe, com certeza está muito além das pás.

RIO DE TUDO


Baleia na praia;
no morro e no asfalto;
balear é da vida.
São muitos os tortos
e tantos os mortos
por bala perdida.


Não morro de medo
da vida e do mundo,
mas na contramão:
Morro dos Macacos,
Morro da Mangueira
e do Alemão.


Se Rio de tudo
é puro sarcasmo;
não por inteiro...
Rio das dores,
do medo e do caos;
Rio de Janeiro.

VIVER


Há um mundo melhor, veja em torno de si,
jogue fora esse mundo que polui seus olhos,
pra que a vida comece um processo de luz
e derreta essa cruz no seu ombro curvado...
Ponha sal na mistura da sua jornada;
faça o sol despontar no desejo de rumos;
mescle açúcar na dose de cada manhã
que desagua no ciclo das muitas vivências...
Eis o tempo da flores, dos novos caminhos,
não importa o passado com seus desamores
ou espinhos que sempre doerão nos pés...
Tenha todas as fés que puder no que for,
a exemplo do amor sobre todas as coisas
e da força que o sonho pode achar em nós...

DOCE FARSA

Aprecio mais o fingimento sincero de quem quer me ver feliz do que a sinceridade fingida e cruel de quem só quer me desmoronar.

INJUSTIÇA

Mesmo quando não devo, temo. Tenho consciência de que vivo num país injusto e desigual.

terça-feira, 5 de junho de 2012

REPESSOA


Depois de tanta vida, comecei a viver. Veio à mente a lembrança do que perdi em vivências consistentes, por acreditar nas disputas mercadológicas; nas corridas para o sucesso notório. Tudo sempre mais público do que pessoal.
Faz tempo, deixei de viver em razão dos outros. Aprendi a saber que estou em mim. Sei me doar sem doer por excesso de autocobrança. Faz-me bem olhar o mundo com serenidade, sem temer a sombra; o anonimato; a classificação nesse concurso instituído por uma sociedade viciada em superar o próximo.
Demorada maturidade. Não tardia, exatamente. Apenas demorada. Em tempo de me recompor, adaptar as sucatas do meu ser e renovar conceitos. Vencer preconceitos. Preencher vazios e me realizar como repessoa.

VAIDADE, AMBIÇÃO E GENTE


É um equívoco atribuir a este ou aquele indivíduo total ausência de vaidade.  O ser humano é vaidoso por natureza, embora nem sempre possa dar vazão, por motivos que incluem condições socioeconômicas, a todos os pormenores de sua vaidade.
 Quem usa roupas rasgadas mesmo podendo vestir-se com apuro ou luxo, é porque vê nisso algum charme. Portanto, é vaidoso. Aliás, faz pouco tempo que a última moda eram as roupas deliberadamente rasgadas. Ainda há, com menos frequência, pessoas que usam essas roupas, bastante caras, com rasgões estilizados produzidos nas confecções. Quem não pode comprá-las, mas aprecia essa moda, produz o efeito em casa e certamente alcança o objetivo de estar em sintonia com o mundo moderno.
A vaidade está refletida nas roupas, nos carros, nas bicicletas, nos aparelhos de celular, nas casas e muito mais. Ela se configura quando aquilo que usamos ou obtemos não tem a única intenção de nos satisfazer, mas também de mostrar aos outros, de alguma forma clara ou velada, o que nos pertence. Não fosse assim, só teríamos telefone para fazer e receber chamadas. Carros e outros veículos, motorizados ou não, somente para nos locomover, sem importar os modelos. Verificaríamos quesitos como conforto, economia e desenvoltura, dentro das nossas possibilidades, mas abriríamos mão daqueles que visam muito mais impressionar o outro.
Pode-se afirmar o mesmo da ambição. Ninguém é verdadeiro quando se diz não ambicioso. Tal pessoa terá, no mínimo, a ambição de não ter ambição, com o objetivo específico (e ambicioso) de alcançar a paz espiritual, por exemplo. Há quem abra mão de qualquer conforto material, para se dedicar ao acúmulo de conhecimentos. Outros querem fazer contatos com alienígenas e tantos não querem nada, mas ainda assim, com vistas à libertação total do ser, para fugir do peso e do cansaço de uma vida vertiginosa.
Jamais afirme para si mesmo que uma pessoa é modesta e absolutamente sem apego. Trabalhar menos para dar aos filhos mais atenção e presença, já não podendo lhes dar tantos presentes, é um belo exemplo de ambição humana. 

BOBO DE TÃO POVO


Os homens bons mandam beijos. Afagam crianças. Abraçam velhinhos. Têm um respeito cândido pelos menos favorecidos, em especial os portadores de deficiências físicas e mentais. 
Normalmente, os homens bons não são tão vistos nas ruas, entre o povo, como ocorre nessas datas de muitos fogos de artífício, carros de som, cores e eventos públicos. Em tais eventos, muitas palavras; arroubos; punhos cerrados. As multidões extasiadas e barulhentas.
Nas entredatas - aquelas em que não precisam se propagar -, parece que os homens bons hibernam: Na geleira intocável da paz de seus gabinetes; no aconchego de suas casas luxuosas, onde junto às famílias se protegem do povo, então incômodo e mal educado. Em si próprios e nos seus carros blindados, quando se locomovem a salvo do assédio popular.
Eles querem sempre as mesmas coisas: Cargos no poder; livre acesso ao tesouro público; riqueza, influência, e tudo isso com pouco esforço. Nenhum compromisso posterior com as multidões que os aclamam.
São homens maus, os homens bons. Deixaram de ser homens de bem, para serem homens de bens. Patrimônio, dinheiro, poder e ganância. Seria justo, se o que eles têm fosse próprio, mas não é. Tudo pertence por direito à população enganada pela bondade falsa, postiça. 
Tudo neles é fachada. Faixa que oculta interesses pessoais escusos. Um teatro cotidiano para ludibriar o povo que os enriquece, mas a cada dia é mais pobre.
Povo bom, esse povo. Bom e longânimo; de boa fé. Uma fé que se deixa enganar, crendo em homens bons no poder público. Boa gente. Boba, de tão boa. Cega de tão povo.

OS DOIS CORTES DA LEI

Jamais façamos o que a lei proíbe, para não sermos criminosos. Também não façamos tudo o que é permitido, para não sermos monstros legais... Afinal, são muitos os casos em que a lei permite barbaridades.

PRÉ-DATADO E VENCIDO


Não recicle o passado, aliás, sequer tente,
Porque sua matéria é pra lá de abstrata
E jamais foi matéria depois do presente,
Ou medalha que o tempo guardou numa lata.


Nossa vida esvaiu, desaguou nessa data
Que não dá pra buscar; só se anda pra frente;
Ademais ninguém pode recompor a nata
Sem haver mais o leite – frio, morno ou quente.


Nem intua que possa conseguir de novo
Fazer sua omelete, se não há mais ovo;
Reformar ilusões diluídas no espaço.


Muito menos amor, que nunca foi seu caso,
Mas um surto emotivo que já trouxe o prazo
Expirado num sonho sem brilho nem traço.

BICHO DE OFÍCIO

Não creio na existência de político honesto. Creio no ser humano, é fato, mas político é outra espécie. Algo monstruoso que, por força de ofício, abdicou da humanidade.

LIVROS: AME-OS OU DEIXE-OS


Abrir um livro é como iniciar uma relação amorosa. Não há como saber no que vai dar. Nem o leitor é obrigado a manter essa relação até que a última página o declare alforriado.
A ideia de que namorar livro seja compromisso irremediável de casamento é o que sempre afasta a maioria dos jovens. Crendo que terá de ler até o fim, seja a leitura boa ou péssima, dinâmica ou maçante, a criança ou o adolescente prefere nem iniciá-la. Feito isto, a preguiça reina por toda a vida. Não se desenvolve o hábito saudável de ler.
Temos o direito de não gostar de um livro. Mas não é direito julgá-lo pelo volume ou a estampa, sem tentar conhecê-lo. Só é possível sabermos se a leitura vale a pena, depois de lidos ao menos o prefácio, a possível apresentação e duas ou três páginas do conteúdo. Se forem versos, artigos, crônicas ou minicontos, que tal sortearmos alguns trabalhos?
O hábito de ler é adquirido livremente; não acolhido via imposições culturais ou acadêmicas. E a exemplo de roupas, guloseimas, programas diversos, cada modalidade literária tem seu público. Leitores têm preferências, gostos pessoais e não devem ser desrespeitados. Por isso há tantos estilos, modalidades e temas nas livrarias.
Dia destes visite uma biblioteca e paquere livros. Você pode “azará-los” com os olhos, as mãos e até as narinas. Se gostar de algum, não custa nada iniciar uma relação. Caso não goste, ao fazê-lo, basta pô-lo de volta na prateleira, sem sequer beijar. Muito menos fazer amor, pois não houve promessa.
Tenho certeza, no entanto, de que se você amar esse livro, haverá casamento. Ficarão juntos até que o fim da leitura os separe – como sempre juram casais aos pés do altar.
Em suma, depois de conhecer o sabor da leitura você nunca mais tomará jeito. Não poderá ver uma barra de página ou capa de livro, sem desejar ler. Aí serão incontáveis as aventuras em prosa e verso, amores, fantasias e sonhos mundo afora.
E não se preocupe: Livros não são ciumentos. Ademais, o seu casamento não será somente com um livro, e sim, com o reino da leitura. Portanto, nenhuma infidelidade. 

REIVINDICAÇÕES EQUIVOCADAS, INSUSTENTÁVEIS E CRIMINOSAS


Por não concordarem com os valores pagos pelo Sistema Único de Saúde, os médicos daquele hospital deixaram que a criança morresse. Tão apenas deixaram, mesmo com todas as chances de salvar aquela vida. Com raiva do sistema e do governo, resolveram punir quem mal nascera; portanto, ainda não tinha culpas para negociar com a frustração dos tão maus profissionais quanto profissionais maus. Monstros incapazes de reivindicar com ética; humanidade; sem abrir mão do compromisso de salvar vidas.
Este caso, que certamente é só mais um dos que ocorrem onde a injustiça dos empregadores – governantes ou não – desperta os monstros adormecidos me deixa preocupado. Será justo continuarmos punindo pacientes, alunos, passageiros, tutelados e toda a sorte de clientela sempre que nos julgamos injustiçados no tocante a soldos e condições de trabalho? Têm sido e serão cada vez mais numerosas as mortes físicas e ideológicas causadas por profissionais em guerras de reivindicações trabalhistas. Ao mesmo tempo, os poderes públicos e privados nada sofrem. Nenhuma das formas de peleja e protesto, já gastas e previsíveis, atinge nossos patrões. Somos nós, ora servidores, ora clientes dos sistemas, as maiores vítimas; não importa em que circunstância.
O que não podemos como servidores é virar carrascos. Perder a ternura ou a humanidade pela qual nos preocupamos com o outro. Com aqueles que dependem de nós para se curar, se educar, se proteger, sobreviver, ir e vir. Não são eles nossos opróbrios, tampouco inimigos. Nem estão com eles os cofres públicos; o domínio e a manipulação das leis; o poder de arbitrar, deliberar ou deferir. Esse povo já é usado à exaustão pelos poderes. Fazendo o mesmo tornamos pessoas, as mais simples e sofridas, tristes escudos para um lado e munições para outro, numa peleja incansável.
No fim da história, transformamos a população em inimiga, e dessa forma, fazemos exatamente o que os poderes querem: Tornamo-los heróis e assumimos o papel de vilões. Em muitos casos, viramos de fato vilões... Assassinos... Pessoas capazes de cometer atrocidades em nome do dinheiro... Exatamente como eles, os nossos patrões.

HORÁRIO ELEITORAL NÃO GRATUITO


Uma pátria forjada por falsas pesquisas
desafia os olhares de gente palpável,
gente simples que vive a verdade notória
sobre a mesa da história de gente sem mesa...
Um país que só cresce na velha falácia
dos horários gratuitos tão caros pra nós,
na galáxia fria das muitas legendas
que nos nutrem de lendas; de fé surreal...
O Brasil de neon que nos vê da tevê,
dos espaços de ofício que o poder aluga,
cria rugas nos olhos, de tanta procura...
Essas caras impostas a nossa esperança
já cansada e sem forças para desistir,
são a sórdida herança desse conformismo...

SAUDADES DE FILHO


Depois do pranto normal e do ranger de dentes, cultuo nesta noite o silêncio que me faz lembrar de minha mãe. Há pouco mostrei para minha filha, que ora dorme, a estrela exuberante que a sua avó se tornou ao nos deixar. A escuridão do terreno a torna bem mais brilhante do que se poderia ver da cidade.
Se minha mãe foi feliz por ter os filhos que teve, com todas as imperfeições, imagine a nossa felicidade por termos tido a mãe que tivemos. Ela foi perfeita como tal. Certamente não foi como ser humano, mas como mãe, não tenho dúvida. Hoje tenho certeza de que sermos apenas bons pais e boas mães não faz justiça ao que ela nos ensinou com sua vida. Temos que ser exímios; beirar a perfeição, não sabemos como nem se viremos a saber.
Mas tudo bem para nossa mãe. Ela nunca precisou de nada para nos amar tanto... Nem mesmo da certeza de nosso amor por ela.

ONDE MORA A FELICIDADE


Em frente à casa pequena e muito simples onde vivo com minha filha mais nova, de cinco anos, uma bela e ampla residência está em fase final de construção. Gil, seu proprietário, é um moço muito simpático, a exemplo de maioria dos moradores dessa pacata localidade semirrural. O moço está noivo; não parece ter condição econômica avantajada, mas é caprichoso, trabalhador e acima de tudo paciente.
Dia destes, quando chegava com a Júlia, deparei-me com o Gil e brinquei. Propus a troca de meu barraco, escondido entre as velhas árvores de um quintal acidentado, por sua casa tão imponente quanto a área que se estende ao fundo. correspondendo à brincadeira, ele respondeu que sim. Que depois falaríamos a respeito.
Já em casa, dei a Júlia um livro de pinturas e fui cuidar do almoço enquanto ela se divertiria colorindo os desenhos de flores, borboletas e crianças. Já era um pouco tarde e não dava tempo de brincar com ela, como sempre faço, dos mais variados tipos de faz-de-conta que saem daquela cabeça encantada; cheia de fantasias.
Quando já servia o almoço, percebi que a Júlia não tocara no livro. Estava triste, calada e tinha os olhos fixos no chão. Naturalmente preocupado, acariciei seus cabelos e procurei saber o que acontecera. O que a deixara daquele jeito, se eu não me lembrava de nenhuma razão para tal.
As lágrimas até então guardadas percorreram a face de minha moleca. Ela disse que não queria deixar a "casinha feliz" onde vivemos, por nenhuma outra. Nem mesmo enorme, linda e luxuosa. Desabafou que passa as horas mais alegres de sua vida em seu quarto pequeno e bagunçado e no quintal, este sim, grande e com muitas árvores, além de um velho e querido balanço no limoeiro.
Depois de consolá-la e dizer que só foi uma brincadeira, não tive como evitar minha lágrima discreta. Não de tristeza, mas de contentamento e ternura. Minha filha é feliz com o que temos! Não apenas alegre, como demonstra nas muitas brincadeiras, contações de histórias e invencionices, mas feliz de verdade! Ama o zelo, presença e atenção paternos mais do que ao conforto que proporciono ou não.
Sou igualmente feliz. Especialmente por saber que não ofereço à toa o melhor do que sou e tenho. E se a Júlia um dia quiser ter conforto bem mais expressivo, poderá fazê-lo. É para tanto que me preocupo em não deixar que lhe falte, além dos ensinamentos domésticos, a boa educação escolar sem a qual não se alcança nos dias atuais nem mesmo o pouco do qual disponho.
Tudo o mais é afeto. Mais lar do que casa. Mais bem querer do que bens. Muito mais presença do que presentes. Mais tempo do que tampas, compensações ou subornos que não cobrem descuidos e abandonos.

PAU E PEDRA


Conheci um Paulo gente boa... Muito gente boa, mesmo. A minha surpresa não quer dizer que eu duvidasse da existência de um Paulo viável em todo o mundo. Nem quero deixar implícito que o Paulo França fecha o pano desse grupo. Tenho certeza de que o meu caso é falta de sorte. Não vinha dando sorte com os Paulos, até conhecer o França.
Já em relação aos Pedros de minha vida, ocorre justamente o contrário. Com excessão de um, que não constrangerei com a citação do sobrenome, os Pedros com quem convivo moram no topo de minhas admirações. Evidentemente, sei que existem muitos Pedros canalhas, desonestos ou simplesmente maliciosos e artificiais. Refiro-me aqui, tão somente aos meus Pedros.
Quero ainda explicitar que chamo Paulo e Pedro de minhas relações aqueles com quem realmente convivi ou convivo estreitamente, quer por meio de negócios, laços de trabalho ou amizade. Se você é, por exemplo, aquele Paulo que só conheço de vista ou de breves encontros e colóquios descomprometidos, não se ofenda. Nem se julgue avaliado por mim. Muito menos incluído na lista negativa.
A verdade é que minha experiência com ambos os nomes não me tornou preconceituoso nem seletista. Sei muito bem que existem - permitam minha trocadilhagem meramente literária - muito Paulo com a doce essência dos meus Pedros e muito Pedro que, no fundo, é um tremendo cara-de-Paulo.

INÉRCIA POLÍTICA

Se depender do empenho de nossos políticos, os nadadores brasileiros serão sempre campeões mundiais e olímpicos de nada são.

INSUBSTITUÍVEL


Quase escuto seus passos morosos e leves
pelos cantos calados da casa pequena,
tenho breves visões do seu rosto suave
que sorria de afeto por me ver chegar...
Sinto cheiro ilusório de comida boa;
chego a crer no seu vulto naquele fogão;
ninguém faz o café que sua mão tecia
como quem tece loa e brinca de sabores...
Sobre todas as coisas cadê seu amor;
em que ponto no poço de ozônio e neon
se perdeu a magia da sua presença?
Não terei recompensa no amor transversal
de quem doa seus dons pra possível consolo
que se afoga no sal do meu pranto profundo...

sexta-feira, 1 de junho de 2012

TABELA DE PREÇOS

Ter tudo é coisa que se descarta na história de qualquer ser humano. A felicidade não é nada mais do que o rabo de um cão que tenta morder esse rabo. Rosna e gira freneticamente até que a canseira o faz entender que melhor mesmo é ficar com a sensação do desabafo cumprido. Ou insiste à exaustão e no fim alcança o intento, mas paga o preço. Como sente o sabor, também sente a dor da mordida.
Na verdade, o tudo só existe para ser antônimo do nada, que, por sua vez, é o mesmo em relação ao tudo. São ambos estimativas do inconcebível; da nossa busca do insondável; do nosso vício de perseguir mistérios e justificar a essência do prosseguir. Do transcender as coisas palpáveis, ao alcance dos olhos. Neste moinho de abstrações é que entra o conceito filosófico de felicidade. Ela existe para ser de alguma forma inexistente e manter um sonho que de repente perde o sentido, se deixar de ser sonho... pelo menos na sua integralidade.
Todas as coisas, das mais fúteis e passageiras às mais profundas e duradouras passam pelo desejo de ser feliz. Entretanto, só se alcança essa graça parcialmente, pois a felicidade é setorizada, estende sempre uma promissória e temos de assiná-la. Quem quer a fama ou o anonimato, a riqueza ou a modéstia, o poder ou a sombra terá de pagar por isso com os efeitos colaterais que surgem na contramão dos rumos e atracam nos destinos.
Caso tente ser feliz em seja lá o que for, verifique a tabela de preços que a vida expõe honestamente como decreta a ordem natural das coisas. Pode ser que tal graça custe menos e seja bem confortável quando nos adequamos a ela, graças à eficiência do comodismo. Tais lições o tempo ensina, impondo até uma certa dignidade por meio do brio e da resignação de quem assume o insucesso da tentativa de obter tudo.
Ou, em última instância, talvez a felicidade seja mesmo isto; não tenha o sentido exato que lhe atribuimos. A plenitude, o sucesso absoluto e o sonho completamente realizado podem ser o início de um abismo, por deixarmos de querer tanto e ficarmos a disposição do vazio. Certamente, ser feliz é estar no céu. No ponto máximo do infinito imaginário, que reside onde nada mais se quer.

ARQUITETO

Só eu sei como guardas o mel verdadeiro;
onde fica o bueiro em que prendes a luz;
ninguém mais adivinha em que pipa se curte
o teu vinho mais nobre, o mais doce licor...
Sei exato em que ponto se tranca o teu gozo,
tua fonte precisa de puro prazer;
não há quem, senão eu, traçaria o teu mapa,
teceria uma capa sobre o teu miolo...
És um livro tão lido, que tenho de cor;
outdoor de mistérios que só eu desvendo;
gabarito que a vida só passou pra mim...
Desenhei essa planta engenhosa de afeto
no papel visceral dos teus fundos sentidos;
sou o teu arquiteto afetivo e carnal...

VOCAÇÃO PARA POVO NO PEJORATIVO

Há um contexto pejorativo para o vocábulo povo: é o contexto comum aos que deixam de escrever a própria história para delegar tal tarefa exclusivamente aos políticos de mandatos. Quando vai às urnas, uma população despreparada não decide a seu favor o destino da cidade, estado ou país. Ao contrário, tão apenas entrega aos cuidados e caprichos de seus eleitos a caneta, o papel e a certeza de que os enredos desses representantes serão impostos e aceitos mesmo a contragosto.
Não há como ser diferente, se além de todas as facilidades citadas os políticos ainda recebem dos eleitores um cheque assinado, com os demais espaços em branco. Em poder desse cheque os prefeitos, governadores, presidentes e respectivos parlamentares fazem o que bem querem. Normalmente, o que eles querem não é nada bom para o povo, e sim, para eles próprios e suas famílias. 
O problema é que esse povo, geralmente simples, pobre ou miserável, analfabeto ou quase, é manipulado pelos maus políticos; maioria nos palácios e câmaras. É um povo chantageado por assistencialismos vinculados à duração de mandatos e que não asseguram dignidade; cidadania. Maus políticos não querem governar ou representar povos educados, cultos, conscientes de seus direitos e autossuficientes; com rendas próprias; livres para votar em quem arbitrem. Preferem ter nas mãos pobres coitados, dependentes eternos das cestas de caridades e serviços precários de educação e saúde, via comitês, que visam apenas manter velhos currais eleitorais.
São povos assim que não enxergam a corrupção avassaladora de seus eleitos. Ignoram que o dinheiro público lhes pertence, pois é público, e tem que ser usado para garantir a todos, uma vida melhor. Principalmente nos quesitos educação, saúde, cultura e geração de empregos. Tais povos perdem a dignidade ao aceitar o abandono e as migalhas daqueles que chegam “lá”, graças à sua acomodação. 
Quando deveria fiscalizar o poder, cobrar atuações verdadeiras e punir os autores de quaisquer desmandos, uma população desavisada reelege os canalhas ou elege seus protegidos. De uma forma ou outra, garantem um continuísmo que devasta qualquer país. Tem sido assim no Brasil e em todas as sociedades que, justo em razão disto, seguem amargando altos índices de miséria, injustiça, violência e analfabetismo. Atrasos imperdoáveis para o nosso tempo.
Constrange-me declarar que o Brasil se consagrou entre as nações mais corroídas por desmandos políticos premiados ao invés de punidos. Nesse contexto pejorativo da palavra, chego a mais melancólica das conclusões: O brasileiro é, sem dúvida, um dos povos de maior vocação para povo.

TROGLODITA ESSENCIAL


Recordo que já deixei de adentrar muitas portas possíveis, tão apenas porque não concordei com as chaves de abri-las. Foram muitas as vezes em que voltei do alvo até mesmo atingido, ao ver que minha honra foi deixada lá atrás, e se a reação não fosse imediata, não haveria mais chance de me redimir.
Por toda a vida, consegui reconhecer quando me decompunha. Sempre senti o mau cheiro de minh´alma e tomei a decisão de recuperá-la. Vi meus cacos espalhados pelo caminho já percorrido e fui lá resgatar esses cacos. Venci a força dos choques morais que me pulverizaram sem dó, para retornar à poeira e depois de refeito nunca mais voltar aos mesmos pontos. Cometer, sim, outros erros, ter de me refazer tantas outras vezes, mas não voltar lá, no que já foi vivido e não valeu a pena.
Confesso que aqui dentro, nos recônditos de meu ser existe um homem matuto e de moral grosseira. Um quase troglodita se abriga sob minha faixa de cult ou astuto. De figura imponente que não fede nem cheira bem; tão apenas ergue o nariz e impõe a figura da qual precisa se armar para sobreviver.
Na verdade, sou um bicho feroz que aprendeu a devorar eufemismos. Uma fera que não suporta palavra somente meio cumprida. Sei muito bem quando a hipocrisia se oculta em gestos e discursos para me levar à degeneração do íntimo, comprar minha consciência, meu silêncio e cumplicidade. Aprendi a saber onde mora uma sacanagem polida e quando se põe a minha frente um canalha bem educado.

NASCENTE DE LÁGRIMAS

Há muitos e muitos anos uma nascente fornece água farta e cristalina aos moradores de todo o bairro de Suruí, distrito da cidade quase interiorana de Magé, no Rio de Janeiro. A água brota no pé-do-morro, cai num pequeno reservatório construído e passa por um cano de meia polegada. O cano a transporta para o outro lado da rua de chão batido, para prover baldes, garrafas pet, galões e outros recipientes levados pelo povo.
Velhos sábios remanescentes, que a minha curiosidade conseguiu encontrar num recanto entre os mais ocultos, segredaram que aquela água tem poderes milagrosos, mas seus poderes escolhem a quem beneficiar. Na verdade, não é apenas água. São lágrimas de uma família que habitou a localidade numa época remota, quando não havia outros habitantes no lugar. Tais anciãos, que se dizem os últimos descendentes de um membro dessa família contam que ela era formada por muitos homens e apenas uma mulher. Chamava Luna.
Luna era uma criatura doce; com poderes mágicos que ninguém entendia, pois só ela os tinha. Sempre que os pais e os numerosos irmãos adoeciam, ela inventava um novo ritual, que envolvia danças e banhos com ervas, para curá-los em poucas horas. Não havia entre todos eles nenhum temor, sequer da própria morte, pois sabiam que Luna estava sempre ali, prestes a devolver-lhes saúde, vigor e a continuação de caças, pescas e colheitas fartas; atividades das quais viviam sem luxo, mas não podiam reclamar.
O que ninguém sabia, nem jamais se deteve a pensar, era que a moça não poderia fazer nada por si própria, caso viesse a adoecer. Como isso nunca acontecera, todos se permitiram levar a vida sem essa indagação. Eram felizes, trabalhavam e se divertiam, não tinham vida social, só familiar, mas isso não era problema. Também não era problema o fato de não terem cônjuges, vida sexual, desde que chegaram, já nem sabiam quando, fugindo de algum lugar por uma razão tão grave quanto inexplicada.
Chegou o dia triste. Mais triste e decisivo de suas vidas. Luna adoeceu pela única – e também a última – vez. Adoeceu gravemente, não havendo erva, banho, ritual nem reza que a curasse. A família entrou em desespero, não apenas por saber que seria o fim de todos naquele fim de mundo em que as doenças eram muitas, mas por amar profundamente a moça que sempre cuidara dos seus com tanto zelo, carinho, dedicação e paciência.
Morreu Luna. A família enlutada envolveu seu corpo em pele de onça e a levou para o pé-do-morro, onde a homenagearam com cânticos, antes de sepultá-la. Só o mais velho dos irmãos, ensandecido, fugiu para longe. O resto da família, depois de sepultar o corpo da moça ficou lá, pranteando sua morte. Todos choraram muito, sem cessar, até que morreram de sede, inanição e desgosto, e foram comidos pelos abutres. 
O irmão mais velho de Luna, depois de anos vagando, encontrou uma bela jovem, com quem estreitou laços e acabou se apaixonando, no que foi correspondido. Ramon, era este seu nome, não demorou a ter filhos com Sara. Ambos foram viver exatamente onde o moço vivia com a antiga família, e qual não foi seu encanto ao perceber que havia exatamente onde Luna fora sepultada, uma nascente de água pura, leve e cristalina. O casal bebeu da água, sentiu-se revigorado e rejuvenescido. Emocionado, Ramon passou da impressão à certeza de aquela água era o pranto de seus familiares.
Perguntei aos sábios, descendentes de Ramon, por que motivo Suruí e toda a região em derredor têm tanta gente enferma, se a água da nascente possui poderes de cura; os tais poderes milagrosos. Eles repetiram que a água escolhe a quem beneficiar com seus poderes e explicaram que a cura não é a partir do corpo, e sim, da alma. Pessoas especiais, com sensibilidade muito aflorada sentem esses poderes e interagem com eles. Só a partir daí podem se perceber tanto revigorados quanto rejuvenescidos.
É como acontece com a própria vida: Precisamos ser sensíveis, desarmados e até ingênuos para perceber as grandes venturas que o dia sobre dia nos traz por meio de pequenas coisas e momentos imperceptíveis aos olhos. Não queremos entender, mas a fonte inesgotável da vida reserva grandes felicidades naquilo que não queremos ver... Nem ter. Acho que a cura da humanidade mora do outro lado de nossas procuras, sempre as mais infelizes. 

MINHA MOLECA

Aos dezessete,
Quando a existência
Já bate ponto
E aquele conto
Não conta mais
Com os teus ouvidos...
O teu momento
Não me delete
Na tecla fria
Do facebook,
Nem o teu look
Me torne antigo...
As tuas marras
De quem chegou
Na faculdade,
Renega idade
Pra ter boneca,
Não me proíbam
Chamar-te ainda
Minha moleca...

MEMORIAL DE SAUDADE

Poderias estar ao alcance do abraço
Que virou este flanco, pois era só teu,
Mas me pego no espaço desta solidão
E não acho resposta pra minha procura...
Meu olhar atropela vazios e trevas,
Vai ao fundo possível pra todos os lados,
Tomo sonhos alados e percorro mundos;
Caio sempre no colo do mesmo cansaço...
É missão de meu beijo encontrar tua testa
E sorver tua bênção, ganhar teu sorriso,
Desenhar uma festa nos vãos desse rosto...
Se me fosse possível pescar no passado,
Puxaria de volta o que não foi vivido
Ao teu lado e no tempo que roubei pra mim...

CANAVIAL


Da cana-de-açúcar
Emerge o bote mortal.
Coral acuada.

REPRIMAVERA


Silêncio de luz
que a passarada estilhaça.
Praça reflorida.

PÁSSARO-GENTE

Tenho asas que o mundo jamais pôde ver, apesar de toda a curiosidade que sempre o consumiu. Usufruo das tais para fugir deste mundo, quando as fatalidades são mais fortes do que a calma que treino, dia sobre dia, para ver que o faço a esmo, quando mais preciso. São momentos em que não suporto a carga, e preciso repousar. Então corto os ares, o espaço insondável, para rever um velho mundo apenas meu. 
Sou pássaro-gente. Nenhum nem outro, e sim, os dois. Todos me dizem que sou um ser estranho, diferente, que vive talvez um ontem perpetuado, mas à procura do presente, coisa que não acho. Sendo assim, um espécime fadado ao não futuro, e desde já extinto, embora o corpo caminhe por aqui.
Este mundo, lá no espaço, na verdade já nem existe. Foi destruído. Está contido na solidão que o corroeu. É a própria solidão. No entanto, por teimosa, vou tentando achá-lo em algum ponto na escuridão; nas profundezas do alto; numa dimensão que nem mesmo a superstição, os misticismos, os mitos e as religiões conseguem explicar. Chego, enfim, a conclusão de que realmente não me conheço.
Contudo, sendo pássaro gente, adoro voar desta maneira! Dou a vida por esta fuga e torno-a cada vez mais frequente. Ao sentir a existência derradeira neste plano, reponho forças, vontade, até mesmo esperança, com todas as desventuras desta empreitada. A viagem, por si só, tem o consolo de que preciso. Consigo redundantemente, cavar o meu resultado exatamente na falta de resultado.
É como venço cada fatalidade, até que surja uma recente. E surge mesmo, é algo infalível. Tão infalível como deveriam ser meu intento, minha viagem, minha fuga. Eis a realidade que permeia duramente o sonho e machuca o peito... Por pouco não poda ou extermina as asas deste pássaro-gente que vos arrulha. 

COINCIDÊNCIAS OU PRECONCEITO RACIAL?


Deixe-me ver se é coincidência ou preconceito: Nas telenovelas atuais não existe um só papel relevante representado por ator negro. E os raros negros que atuam nos papéis secundários dessas novelas fazem personagens hilários, caricatos ou capachos. Os vilões, por exemplo, são escadas de vilões brancos, que ostentam mais ousadia, inteligência, estratégia e liderança..
Vejamos também se é coincidência o fato de ser ainda mais raro ver na tevê um noticiarista, repórter, âncora ou apresentador. Pode ser igualmente coincidência - ou coisa desta cabeça de quem vê maldade ou segregação em tudo -, mas parece que o mesmo ocorre nas passarelas de moda; nas atividades frontais dos bancos, lojas de artigos finos, recepções de grandes empresas e outros estabelecimentos de luxo.
Da mesma forma, preciso que alguém me diga se a história se repete ou não nos tais concursos do tipo "menina fantástica". Invariavelmente, a única candidata negra inserida entre as centenas de brancas e ruivas a cada edição, não passa do meio do caminho. Sua participação não duradoura é apenas uma espécie de satisfação ou cota, o que logo fica evidente. Os próprios anúncios desses concursos, feitos por moças brancas, louras ou ruivas são prenúncios desta verdade.
Se as coincidências - demais, para serem coincidências -realmente não são, nosso país retrocedeu dos poucos avanços de mentalidade registrados nos últimos anos. Agora já não sei se foram mesmo avanços de mentalidade via campanhas de conscientização, ou nada mais do que efeitos forçados pelo impacto inicial das leis contra o racismo. Hoje me parece que a única mudança real - e também inválida - foi de classificação nominal. O Brasil, que jamais respeitou negros e mestiços continua desrespeitando, excluindo e desmerecendo a quem hoje chama afrodescendente.
Coincidência ou não, a elite branca ou pretensa deste país voltou a delimitar, veladamente, atividades; ambientes; cultura; lazer de brancos e negros. Determina, então, no que o afrodescendente pode ou não - e quando - ser bem sucedido. O que não pode, salvo excessões que ninguém consegue segurar, é estar na frente; ser destaque ou vitrine. Para esta sociedade, negro pode ser popular, mas não célebre. Aplaudido, mas não reverenciado. Querido, mas não lengendário.
Pelo visto, não há decreto que abra, em definitivo, essas mentalidades. Até quem cria e sanciona os decretos, normalmente os ignora. Nas escolas, onde se deveria cultivar a esperança de um futuro melhor neste aspecto, direções e professores continuam resistindo a qualquer lei que pretenda obrigar a aplicação profunda e ampla dos estudos de africanidade ou afrodescendência. Por ignorância e preconceito, querem falar do assunto sem abordar aspectos fundamentais, como religião e crendices. Com tal atitude, acumulam separatismos.
As leis brasileiras contra tudo isto são relevantes, mas ficam lá, presas no papel e na burocracia. Faltam rigor, cobrança e vigilância do poder público, para que se cumpram. A sociedade reluta; cede um pouquinho aos alarmes iniciais das novidades, mas em pouco tempo relaxa e volta, impunemente, a ostentar preconceito... ou a cometer "coincidências" intermináveis.