quinta-feira, 29 de novembro de 2012

DESAFIO ELEITORAL GRATUITO


Segundo as palipoteses polibromáticas do salamalequismo reunitório das edilências e alcaindecências do presente pleito eleitocrático, há uma projetância magnânima de melhoraticidade, a depender do votacionismo do populacho. Somos os guardiatistas da merdanidade, alertacionando totalitariamente quanto ao índice de periculosicismo da voltação, via voticídio, dos que não foram, porque de certa formicínia ficaram por intermedicínio da ernanidade que sempre assolarinou o cenário monopolitiqueiro da municipateticidade, aproveitacionando-se do mega indicinismo de besticicicínio da plebitude.
Digacionamos assim por assim dizimarmos, providencializamos o poder continuacionista de continuar podendo o cúmulo da maximinidade do idiotório deste povilho que sempre nos reconstitucionou com brevidade, bastando que o iludicionemos com patati-patatás. Resuminescendo a prolixização hiperbolicrática do simplificismo politiqueirista, estacamos aqui para declaracionarmos neste singelicioníssimo palavratoreado, que tanto faz como tanto fezes: nesta cidade, o que parece prefeito, digo; perfeito, na verdade não é. Nas questionâncias podercionistas da municipolaridade, não importa quem pode pela frente... há sempre alguém podendo por trás.

DO BEIJO

O beijo é a expressão silenciosa da palavra não falada, e mesmo assim dita, pela mesma via. Seja de amor, afeto, paixão, falsidade, a voz do beijo é de fácil tradução.

AMOR É AMOR


É melhor ficar só
do que só "ficar"...
Amar não tem eufemismo.

AGRADOS DE AFETO


Quero apenas beijá-la dos lábios aos pés;
Ao invés de adentrá-la, passear em torno;
Visitar seus contornos e sorver os eixos,
Dirigir minhas mãos nos relevos e picos...
Quero ser inquilino da sua varanda,
Sem nenhuma invasão de aposentos secretos;
Levarei o meu “Panda” pra você brincar
De carinhos; de concha; bola de cristal...
E terá sua praça no meu corpo inteiro,
A gangorra, o balanço, gramado, escorrega;
Um canteiro de sonhos e de fantasias...
A mulher perigosa vai virar menina,
Sua flor será minha e lhe darei melado;
Meu agrado agridoce; recheio de afeto... 

PALAVRÃO AMOR


Houve um tempo de nossa infância, quase adolescência, em que falávamos muitos palavrões. Por toda a adolescência, tivemos o hábito de xingar, mas na pré, xingávamos como se respira. Como sempre, a nossa mãe nos pedindo para medirmos as palavras, termos educação pelo menos na presença dos adultos, e às vezes brigando firme conosco. Mas demoramos a atendê-la. Demoramos muito. As ruas, aonde fazíamos nossas virações e das quais não saíamos tão cedo ao encerrarmos expediente, sabiam nos manter desbocados.
Como se não bastasse, de repente o Jô e eu cismamos de levar às nossas primas Lucimar e Luciana, filhas mais velhas da tia Elídia e do tio José Carlos, porém mais novas do que nós, um pouco dos nossos conhecimentos de palavreado chulo; para não dizer escabroso. Dávamos aulas insistentes, às escondidas, e as meninas até que não foram más alunas. Não eram nota dez, mas também não tiravam notas vermelhas. Em pouco tempo, aquelas crianças que mal sabiam articular palavra já conseguiam dizer um básico “fi da puta”; um “puta que paiu” meio atravessado, entre outras modalidades do palavrório proposto.
Mas aquilo não durou muito. Bem atentos, o tio José Carlos e a tia Elídia logo perceberam que as meninas estavam meio desbocadas e desconfiaram da origem do conhecimento repentino daquele repertório. Exigiram de nós, de forma bem convincente, que nunca mais voltássemos a fazer aquilo, além de levarem o assunto ao conhecimento de nossa mãe, que daquela vez prometeu, também de forma bem convincente nos dar uma surra, caso notasse que aquela história teria continuidade. Para nossa surpresa, os nossos tios não proibiram que continuássemos brincando com as primas, as mais velhas nem as mais novas, que depois cresceram, tanto quanto o Carlinhos; todos bem educados, bem resolvidos, e muito queridos por todos nós. Creio que a manutenção da confiança de nossos tios foi mais importante que as broncas e as promessas de providências mais duras. 
Termos hoje o amor de nossa tia Elídia; nossos primos Lucimar, Lucineia, Rosemeire, Carlinhos, além de termos desfrutado da presença do tio José Carlos, que faleceu há muitos anos, e da Luciana, nossa doce prima Luciana, que faleceu faz pouco tempo, é uma grande alegria para nós. São e foram pessoas de caráter singular, que nos ensinaram muito, e ainda ensinam, sobre afeto; sensibilidade; solidariedade; perdão. Sentimentos fundamentais que palavras, palavrinhas e palavrões (ao pé-da-letra) por si só não definem.
E a nossa mãe, nossa Maria, que já não está entre nós, pelo menos fisicamente, agora pode mesmo repousar em paz. Seus filhos nunca esquecerão suas lições, as palavras, o amor exagerado, sua entrega e a vida inteira dedicada exclusivamente à felicidade plena daqueles moleques que para muitos eram casos perdidos. E ao deixamos de ser moleques, ela continuou preocupada com seus marmanjos, porque nunca deixou de vê-los como crianças que ainda precisavam dela...
... E precisávamos mesmo. Já estávamos criados, maduros, com filhos, quase com netos, resolvidos como pessoas e profissionais, perfeitamente socializados, mas não sabíamos viver sem seu amor... Sua preocupação... Seu mimo de mãe que só sabia ser mãe, porque nasceu para isso. Para ser imperfeita como ser humano, porém perfeita como nossa mãe, porque nesse aspecto, ela foi mais do que um ser humano... 
... Se não sabíamos, tivemos que aprender a ficar sem ela. Ainda bem que hoje temos, eu e meus irmãos, um ao outro, além dos nossos primos e a tia Elídia, cujo rosto e cujos modos nos emprestam algo de nossa mãe... E também nos ama... Conhece o sentido exato da palavra ou do imprescindível palavrão amor. 

NOVA DOENÇA


Não havendo paixões, tudo estava em seu canto;
De repente alguém chega; puxa minha crina;
O remédio que havia, vira estricnina;
Perco teto, paredes, roupa, chão e manto...

Acabou todo estoque daquela vacina
Que domava o meu corpo, fazia o quebranto,
Protegia minh´alma contra o velho encanto
Pelo qual sofri muito e quis mudar de sina...

Quero a luz que deságua de uns olhos recentes,
Mas não quero querer; profetizo amargura;
Já me sinto amarrado por essas correntes...

A paixão é doença, encontrarei a cura,
Porque vejo por olhos muito além das lentes;
Não existe promessa pra minha procura...

PELAS COXAS DE ROSELITA


Clebinho e Robinho, que não eram Clebinho e Robinho, mas neste caso acho prudente preservar seus nomes, foram dois grandes amigos que tivemos na adolescência. Daqueles amigos com quem brincamos, brigamos, fazemos arruaças e dividimos o que temos. As arruaças foram nossas partilhas mais constantes naquelas ruas inesquecíveis de Santa Dalila. Se dissermos nos pormenores tudo o que fizemos juntos naqueles tempos, muitos custarão a crer. 
Nossos amigos não viviam na penúria, como nós; por isso não precisavam vender bolinhos e pastéis, o que lhes dava mais horas ociosas. No entanto, era por nosso tempo que eles aguardavam, pois a nossa criatividade para fazer coisas erradas era tamanha. Quando eu, o Beto e o Jô, os mais velhos de nossa casa, chegávamos das virações, lá estavam eles, Clebinho e Robinho, à disposição para pormos tocos na “linha do trem”; fazermos armadilhas para furar os pneus dos poucos carros que entravam no lugar; brigarmos com os outros moleques; fazermos bagunças inimagináveis na piscina pública do outro lado do bairro, entre outras estripulias.
Em pouco tempo de amizade, os meninos nos apresentaram sua irmã, Roselita, que também não era Roselita, e era um pouco mais velha do que nós. Foi o bastante para deixarmos de nos concentrar em tudo o mais, passando a prestar atenção apenas nela: Era uma garota morena, muito bonita, e tinha um belo par de coxas que sobravam num short muito curto e apertado. Roselita passou a participar de nossas bagunças, de forma passiva, mais por ingenuidade que por malícia. Tão apenas nos acompanhava e ria. Ria muito, quando aprontávamos nossos desatinos.
Naquele tempo, havia uma brincadeira muito popular, chamada Mandraque. Fazíamos um trato, pelo qual toda vez que nos aproximávamos, devíamos dizer, bem depressa: “Licença!”, sob pena de alguém gritar: “Mandraque aí, licença!”, para que a pessoa surpreendida ficasse parada na mesma posição, por longos minutos. Certo dia o Jô, o Beto e eu, reunidos na ausência de Clebinho, Robinho e Roselita, resolvemos inventar uma brincadeira baseada na grande ambição de passar a mão nas coxas de Roselita. Depois de tudo amarrado, procuramos pelos amigos e os persuadimos a fazer “o trato”, pois era também uma brincadeira muito popular.
Em princípio, a rejeição deles foi contundente; principalmente a da Roselita, que argumentou não ter nenhuma vontade de passar a mão em nossas coxas; portanto, sairia no prejuízo. Os meninos também argumentaram sobre o prejuízo deles e de Roselita, porque nossas irmãs não nos acompanhavam e não tínhamos nenhuma outra companhia feminina. Mas fomos mais convincentes: Dissemos que se tratava de uma brincadeira sem maldade, que eles não estavam confiando em nós, e também que não íamos enfiar a mão na Roselita; só passar bem de leve, nas suas coxas, caso ela se descuidasse a ponto de não dizer “licença!”, antes de gritarmos “coxinha ai, licença!” e fazermos o que tínhamos direito. “Ela era ou não era uma garota esperta?”.
Com a esperteza desafiada, Roselita resolveu topar a brincadeira e apaziguar seus irmãos, convencendo-os de que não daria moleza. Ela só não contava com a nossa estratégia de doravante sempre chegarmos depois deles aos locais de partida para as aventuras, e de formas inusitadas. Também passamos a forçar encontros em lugares que tivessem mato alto, para nos escondermos, e quando eles chegassem, já pulássemos dos esconderijos gritando em alto e bom som: “Coxinha aí, licença!”. Era um tormento para Roselita, que tinha de “honrar” o trato, permitindo que ao mesmo tempo três moleques passassem as mãos em suas coxas.
Engana-se, quem pensa que Roselita era vulgar. Não era. Só era mesmo ingênua, e naquele caso, sentia-se protegida pelos irmãos, embora eles fossem mais novos do que ela. No mais, tinha uma conversa bem agradável, de nível bastante superior às nossas bobeiras, e nunca nos permitiu qualquer ousadia maior do que passarmos as mãos em suas coxas, o que só fazia para “manter o trato e a palavra”.
Saímos de Santa Dalila. Mais de trinta anos depois, voltei a morar no mesmo local, mas nunca mais os vi. Recentemente, soube que o Clebinho morreu de tuberculose há muitos anos; o Robinho se casou e ninguém sabe onde foi morar. Também se casou a Roselita, com um homem que a “boa língua” classificou de um ótimo partido. 
Como o dizia no início deste relato, Clebinho e Robinho, que não eram Clebinho e Robinho, foram dois grandes amigos em nossa adolescência. Daqueles amigos com quem brincamos, brigamos, fazemos arruaças e dividimos o que temos. E neste caso, eles foram muito mais amigos do que nós... Foram solidários o suficiente para dividir conosco as coxas de Roselita.

UM CASAMENTO MEIO LOUCO


Foi uma bagunça, o meu casamento. Refiro-me ao casamento mesmo, aquele no cartório e com cerimônia na igreja. Como fui das ruas por um tempo, conheci muita gente que a sociedade não concebe ver numa festa social. Gente maltrapilha, suja ou bêbada, mesmo quando não bebe; drogada, mesmo quando não se droga. Não fui exatamente um amigo de todas aquelas pessoas, mas tive contatos eventuais; conversei, troquei gentilezas e até conquistei algum prestígio no meio.
Depois de um tempo namorando sério, trabalhando em jornal, me relacionando com pessoas "aceitáveis" dentro do contexto de sociedade, com o qual qual não compartilho, mas tenho que sobreviver, acabei por me afastar daquelas figuras. No entanto, as figuras continuaram a saber de mim, talvez pelos seus sinais de odor e fumaça. Daquele tempo, de quem mais me lembro e até cheguei a ser amigo, é o "Biscoito": Um senhor ex-combatente, que tinha uma hérnia supurada, jamais tirava sua velha farda imunda, e bebia muito... Vivia caído pelos bancos de praças. Eu, na verdade, gostava muito do biscoito. Fui um adolescente que vivia enxergando um pai em qualquer homem mais velho que me tratasse com alguma deferência. E aquele homem me dava esse tratamento: Conversava comigo de igual pra igual, contava suas experiências de guerra e dava conselhos cujo objetivo era me persuadir a não virar um morador de rua, como jamais virei. Falo que fui das ruas, porque não tinha paradeiro. Dormia nos locais de trabalho, comia em qualquer lugar e queria passar um tempo fora de minha casa, crendo que assim conseguiria dar voos que não conseguia vislumbrar estando em família. Ilusões de adolescente esquisito.
Havia também o Bareta, com quem tive alguma amizade. Ainda hoje o vejo pelas ruas de Piabetá. O Bareta, que já está bem melhor, e até vende sorvetes pelo bairro, é um homem que a cada dia tomava as ruas fantasiado de algum personagem da história da humanidade: Nero, César, Cristo, Hitler, Santos Dumont entre outros. Um homem bastante culto, que foi bem sucedido em algum momento de sua vida e compunha músicas de rara beleza, mas perdeu tudo, inclusive a família, por causa do vício da cachaça. Também aprendi muito com o Bareta, uns anos mais velho do que eu, pois em seus momentos de lucidez ele me falava sobre suas perdas e dizia de formas convincentes, que não seguisse os seus exemplos.
Dizia que meu casamento foi uma bagunça. O salão espaçoso da igreja católica em Piabetá, que já era pequeno para os familiares e os muitos convidados da Eliana, cujos amigos eram socialmente corretos, além dos meus familiares, de repente foi invadido pelas tais figuras estranhas. O Biscoito, mais bêbado e fedorento do que nunca; o Bareta, fantasiado de Cristo e com uma coroa de arame farpado na cabeça; o Calunga, todo esfarrapado e com a cueca suja aparecendo; a Dona Brasilina (uma senhora risonha e bonachona que morava em uma casa cheia de porcos na Rua Guarani e sempre me cumprimentava com simpatia) foram apenas algumas das criaturas do "meu tempo", que apareceram por lá.  Sinceramente, não as convidei, mas lá estavam elas para me desejar felicidade. Se não as convidei, também não permiti que ninguém as pusesse para fora; nem mesmo o padre daquela igreja que minha esposa e família frequentavam. Nossa sorte foi que os convidados de fato eram tantos, e lotavam de tal forma o salão paroquial, que até hoje nem sei quantos notaram aquelas presenças fora do padrão.
Para mim, o que realmente contava naquele momento era o quanto estávamos felizes; eu e a Eliana. Se havia pessoas incomodadas ou com nojo, se as formalidades estavam sendo bem cumpridas ou não, a nossa felicidade pairava sobre tudo. Quanto ao mais, havia comida e bebida para todo o mundo. Meus amigos esfarrapados não deixariam ninguém com sede ou fome; até mesmo porque notei o quanto estavam bem educados ou tímidos naquele ambiente que não lhes era comum. 
Já que falava em felicidade, havia duas pessoas tão felizes quanto eu e a Eliana: Uma delas era a Dona Maria, mãe da Eliana, que acompanhou a filha, no papel de pai, até o altar do templo. A outra Dona Maria era minha mãe, que depois de tanto lutar para ter seu filho em casa e voltar a cuidar dele mesmo depois de adulto, estava certa de  que encontrara quem o fizesse por ela... Entregava, enfim, seu filho, à mulher que foi capaz de fazê-lo conceber de novo a ideia de um lar. 
A Eliana foi responsável por um dos momentos de maior esperança e alegria de minha mãe.

"MODÉSTIA"


Que me desculpem Cervantes,
Beethoven, Kafka, Dante,
Qualquer errante no limbo
Que tenha este carimbo:
Abriga o rei Salomão...
E me perdoem Bandeira,
Drummond, Elis, Risoleta;
Só vou girar a roleta
E dar aceno formal,
Quando for ponto final...
Não leve a mal Villa Lobos,
Não fique assim, ora essa,
Meu caro e querido Eça,
Por eu não ter tanta pressa,
Pois tanto lhe Queirós bem!
Nem me condenem Platão,
Danuza, Nara, Tristão,
Agatha, Shakespeare, Freud,
Pixinguinha, Exupéry, 
Pois gosto muito daqui...
Já resolvi que demoro,
Mas um dia também chego;
Vencerei o meu apego;
Pode ser que só embarque
Depois de Chico Buarque...

UM EU MELHOR


Aprecio ser quem sou...
Mas eu bem que podia
ser eu mesmo com melhoria...

FIM DE JOGO


É melhor nos deixarmos onde nos achamos,
Porque somos brinquedos que podem ferir;
Somos quebra-cabeças que fundem o senso;
Muito mais do que penso e com certeza intuis...
Não podemos ficar nesse jogo infinito,
Construir esse mito possível no tato,
Balançar a roseira pra fugir das rosas,
Quando prosas e versos assumem texturas...
Precisamos voltar aos extremos de outrora;
És aurora num tempo em que já sou ocaso;
Temos prazo expirado no justo começo...
Hoje saio do bingo e não reclamo as perdas,
Pois é preço adequado pela mão no fogo;
Não encontro mais fundo para prosseguir...

NÃO ERA O FIM DO MUNDO


Nunca esqueci aquela madrugada em que nossa mãe nos reuniu para morrermos juntos, porque chegara o fim do mundo. Foi quando morávamos em Saracuruna, que por outras razões também nunca esqueci. Recordo que uma sucessão de estrondos ensurdecedores abalavam as paredes, pela trepidação, e pareciam forçar a porta e a janela para dentro do cômodo que ocupávamos naquela vila de casas. Pelas fendas, víamos um clarão imenso lá fora e podíamos ouvir as vozes desesperadas de pessoas que se aglomeravam na rua.
Ficamos dentro de casa. Nossa mãe jamais concebeu a ideia de morrermos separados. Longe um do outro. Sempre se armou para não deixar que nada ou  ninguém nos dispersasse. Para que nada ou ninguém nos tirasse dela, pelo menos enquanto não fôssemos autossuficientes para seguirmos devidamente criados, nossos destinos: Trabalho, carreira, casamento, escolhas... Queria nos preparar para o mundo e a vida; enquanto isso, viveríamos juntos; morreríamos juntos, se fosse o caso. Nem o fim do mundo nos arrancaria de seus cuidados.
Com exceção do Jô, que  naquela época dormia um sono de pedra, e da mesma forma, nem o fim do mundo podia despertá-lo antes da manhã, ficamos na expectativa. Sequer me lembro de quantos foram os estrondos ou de quanto tempo durou aquela eternidade. Só sei que foi uma eternidade, como são eternos todos os momentos de angústia, dúvida, medo, insônia e solidão.
No fim das contas, não era o fim do mundo. Quando já nos conformávamos, ouvimos passar um carro de som, cuja mensagem pedia que o povo se acalmasse, pois uns tanques de petróleo da refinaria em Campos Elísios explodiram, mas tudo estava sob controle. Campos Elísios, onde se localiza a Refinaria de Duque de Caxias, é um bairro bem próximo de Saracuruna.
O dia raiava. Era nova manhã. Refeitos do susto, e sabedores de que não havia mais perigo, eu e o Beto, já quase adolescentes, demos um jeito de nos aproveitar do alívio de nossa mãe, para irmos lá fora. Foi uma tentativa de vermos algumas mulheres seminuas que ainda estivessem na rua, e nesse caso, não fazíamos questão alguma da família inteira reunida.

"A VIDA É BELA"


Um dia, lá pelas 15 ou 16 horas, dois bandidos entraram no prédio em que nossa mãe trabalhava como doméstica no apartamento de Dona Neide. Eram bem moços; talvez adolescentes. Foram direto ao apartamento, e pelo visto, era mesmo para lá que pretendiam ir. Tocaram a campanhinha, nossa mãe abriu inadvertidamente, sendo logo surpreendida por um empurrão e duas armas apontadas para ela. Entraram, ordenaram que trancasse a porta e deram início a pelo menos duas horas de pressão e terror. 
Nossa mãe sempre levava o Léo, que na época tinha pouco mais de três anos. Léo é o nosso sobrinho. Filho da Carminha. Criado alguns anos por nossa mãe, porque pouco depois que a Carminha o teve ainda bem nova, não houve como levá-lo para o seu trabalho. Ela não entregou o menino para ser criado pela avó. O fato é que nossa mãe foi ficando com o Léo durante a semana, ele foi se apegando muito, nossa mãe também, de forma que o processo de readaptação à convivência estreita com a mãe levou alguns anos. A Carminha não quis forçar nenhuma situação que gerasse trauma e ficou por perto, coadjuvando na criação do filho, até que o mesmo voltou a se apegar a ela.
Mas eu falava do assalto. O Léo brincava no chão da sala do apartamento. Dona Neide nunca se importou que nossa mãe o levasse consigo, pois não comprometia o trabalho.  O menino viu os homens entrarem, sorriu para eles e voltou a brincar sem perceber a gravidade da situação. Os assaltantes queriam as joias. Nossa mãe não sabia quais joias, mas eles sabiam. Exigiam que ela dissesse onde ficava o cofre, além de exigirem chave ou combinação de abertura. Nossa mãe, temendo que fizessem algo contra o Léo, procurou conduzi-los à cozinha, dizendo coisas quase desconexas. Eles foram gritando impropérios e fazendo ameaças. Ela falava baixinho, pedia que tivessem calma, e de vez em quando implorava para ver como estava o neto. Os bandidos deixavam, não sem antes avisarem de que matariam a ambos, caso houvesse algum escândalo da criança ou tentativa de fuga de fosse lá de quem fosse.
Naquelas idas e vindas até a sala, nossa mãe dava mais um brinquedo ao Léo, sorria para ele, fazia um carinho e pedia que ficasse lá brincando, não saísse da sala, porque aqueles moços estavam procurandoalguma coisa e não podiam ser interrompidos. O Léo sorria obediente, continuava entretido, e o clima nos outros cômodos era cada vez mais tenso: O cofre não era em nenhum quarto, nossa mãe sequer sabia de sua existência, e todos o procuravam pela casa inteira. 
Em dado momento, os bandidos resolveram que matariam avó e neto, porque não estavam tendo “colaboração”. Foram até a sala, sob pedidos desesperados de nossa mãe, que naquele momento já os segurava, sendo empurrada por eles. Quando chegaram perto do Léo, a tentativa derradeira: Nossa mãe mentiu, dizendo finalmente que sabia do cofre. Balançando as armas, os bandidos disseram que só dariam mais uma chance. Nesse momento o Léo pareceu perceber que alguma coisa estava errada e fez menção de chorar. Os bandidos se agitaram, mas antes que dissessem alguma coisa nossa mãe afirmou que só os ajudaria se o menino não sofresse nada, continuasse na sala e eles se afastassem um pouco para que ela o acalmasse. Mesmo possessos, assentiram. 
Nossa mãe se abaixou, fingiu muita calma e disse ao Léo que os rapazes eram sobrinhos de Dona Neide, procuravam brinquedos e aqueles “troços” em suas mãos eram brinquedos perigosos. Para dar credibilidade ao que dizia, pediu ao Léo dois carrinhos que daria pros mesmos e lhe disse para permanecer no mesmo lugar, enquanto ela ia lá dentro.
No momento em que nossa mãe os conduzia sem saber para onde, nem o que fazer, uma sirene de polícia tocou lá embaixo, bem perto, e alertou os bandidos. Inexperientes e assustados, eles perguntaram se nossa mãe tinha chamado a polícia. Ela jurou que não, mas voltou a mentir: Disse que viu pela janela quando a vizinha de um apartamento do prédio vizinho, acompanhada de várias pessoas apontava para lá. Deviam ter chamado a polícia, concluiu.
O barulho da sirene persistia, e dava para perceber que o carro da polícia estava parado no condomínio. Os rapazes se apavoraram, surpreendentemente soltaram as armas, ordenaram que ela fosse destrancar a porta lhes dissesse como sair dali com segurança. Nossa mãe os orientou sobre uma escada escondida que nem ela sabia se tinha mesmo, abriu a porta e ainda lhes disse um “vão com Deus”, como sempre dizia para todos. Aliviada, mas ainda nervosa, voltou correndo para chegar ao Léo antes que ele se aproximasse das armas deixadas na casa.
O Léo estava mesmo próximo das armas, mas não mexeu. Afinal, sua avó advertira de que eram brinquedos perigosos. Mesmo sem saber, nossa mãe lhe disse a verdade, quanto a serem de brinquedo. A constatação se deu horas depois, quando Dona Neide chegou, com o marido. Isso explica porque os bandidos fizeram pressões e ameaças, mas não levaram a cabo. 
No entanto, se os moços não eram tão perigosos, de uma coisa nossa mãe tinha razão. Os brinquedos eram. Brinquedos como esses são escolas para crianças e adolescentes, e às vezes, armas de verdade nas mãos de pessoas dispostas a tudo. Perigosas, inclusive, para quem as porta, pois a polícia, em caso de confronto, jamais perguntará se as armas de quem está do outro lado são verdadeiras ou não. Pena que muitos pais ainda não despertaram para isso.

A CHAGA DO JÔ


Um descuido na pedalada que deu na bicicleta com a qual trabalhava fazendo entregas pela cidade de Magé fez a canela do Jô atritar com a ponta do pedal e abrir uma pequena ferida. Nessa época morávamos no bairro Vila Olímpia, que hoje pertence à cidade de Guapimirim. O Jô trabalhava para uma pequena mercearia e parecia gostar. Era se não me engano, seu primeiro trabalho diferente de vender bolinhos e picolés nas ruas ou balas nos vagões de trens, de onde várias foi vezes levado à FUNABEM, pelos guardas da ferrovia. Nossa mãe, que sempre pedia para ele não voltar aos trens, tinha que deixar todos os afazeres e ir buscá-lo, munida de nove certidões de nascimento para sensibilizar os atendentes da instituição, que nas últimas vezes não queriam mais soltá-lo, e só o fizeram mediante apelos maternos exagerados e a promessa de que, se fosse preciso, amarraria o Jô. Era difícil, porque meu irmão mais velho crescera muito, ficara muito alto, já parecia um adulto e tomou gosto pelas aventuras na ferrovia: Correr dos guardas, fazer amizade com os meninos infratores – para “tirar uma onda” e até se juntar a esses meninos em brigas de corriolas –. No mais, vender balas nos trens dava mais dinheiro; ele se sentia mais homem... Mas era proibido.
Voltemos à pequena ferida pelo descuido na bicicleta: Os cuidados comuns, como higienização e curativos caseiros não funcionaram. A ferida cresceu. Já preocupada, nossa mãe procurou um posto de saúde, aonde o Jô ia sistematicamente para tratar daquilo. Mas, estranhamente, a ferida continuou crescendo. Passaram-se meses, e ficou resolvido que naquele posto de saúde ninguém estava sabendo cuidar do Jô. O próximo passo foi um hospital, onde se verificou que a ferida não só estava enorme, como também estava profunda e já tinha larvas. O procedimento quase diário dos enfermeiros, sob supervisão médica, era retirar as larvas, lavar a ferida com água oxigenada, logo depois aplicar mercúrio e outros remédios, para cobrir com gaze. Um ritual que durou pelo menos mais três meses. Depois desse tempo, a constatação: Tudo piorou. Ninguém mais sabia o que fazer pelo nosso irmão, que chegou ao desespero e começou a procurar a cura em sessões de umbanda. Chegou a fazer ebós, na tentativa de agradar aos supostos espíritos algum dia ofendidos por ele, conforme foi informado em uma dessas sessões. Por causa dessa informação, o Jô recordou que um dia, com a minha ajuda e a de alguns colegas, vandalizou um ebó numa encruzilhada próxima de nossa casa, quando morávamos em Vila Olímpia. 
Nada... Nada... Nada... Sua ferida crescia e se aprofundava. Foram dois anos de grande agonia e medo de perder a perna, pois um médico já dissera que talvez fosse a única solução. Pouco tempo depois, voltamos a morar em Santa Dalila, primeiro lugar onde moramos ao chegarmos de Brasília, quando nossa mãe resolveu sair de lá por causa da violência e da infidelidade do nosso pai. O lado do qual morávamos não tinha nem luz. A nossa iluminação não era nem à base de vela, e sim, de lamparina. Em todo aquele lugar não havia (como não há, depois de tantos anos) mercado, farmácia nem hospital, evidentemente. Mas do outro lado da estrada existia uma pracinha e pelo menos luz elétrica, nas poucas casas e um pequeno templo evangélico. Naquele meio existia uma casinha; minúscula, mesmo, que servia como pretenso posto de saúde. Pretenso, porque não tinha médico nem enfermeiro. Apenas uma senhora semi-analfabeta, que atendia como auxiliar de enfermagem. Era uma senhora negra, simpática e sorridente, além de grandalhona. Falava muito, e até um pouco errado, com aquele sotaque forte, mas que sempre achei agradável, de pessoa da roça. Na verdade, um sotaque parecido com o meu, que só é bem menos acentuado.
Formidável surpresa: Dona Dionísia, embora não sendo enfermeira, talvez nem mesmo auxiliar, tinha muita vivência e uma perspicácia rara nos profissionais de saúde que atualmente conhecemos. Meio desconfiados e sem ânimo, lá se foram nossa mãe e o Jô, para mais uma tentativa. “Não custava nada, né?”. Pois bem: Dona Dionísia segurou sem medo e nojo, a perna do Jô: Olhou bem a ferida, sem fazer trejeitos, depois mirou com firmeza os olhos de meu irmão, e disse: “Ói; meu filho; você deve sê alérgico a alguma coisa que tão botando em sua perna. O que vô, fazer, e não sei se vai dar certo, é tirar algumas coisas e botar outras. Você confia em mim?”. Confiaram. Como não confiar em alguém tão seguro, taxativo e sincero? Mais uma vez, a esperança estava no ar. Ainda não exatamente no coração, mas no ar. Aos poucos, ela voltaria para dentro, para o lugar de praxe, que deve ser ocupado no ser humano. E assim, mãe e filho se prepararam para mais uns meses de peregrinação ao posto de Santa Dalila. Tentativa derradeira. O possível próximo passo não seria outro senão a rendição ao médico acomodado que talvez gostasse de cortar pernas. 
Não houve meses de peregrinação. Em menos de duas semanas Dona Dionísia descobriu que o excesso de água oxigenada estava decompondo a carne em torno da ferida, fazendo-a crescer. As larvas nasciam disso e comiam a carne decomposta. Dona Dionísia também descobriu que o Jô era alérgico a mercúrio. Substituiu a água oxigenada por sabão de coco, eliminou o mercúrio e outros medicamentos que julgava excessivos e desnecessários e determinou: “Duas veis por mês vocês vêm aqui só pra eu vê como vão as coisa. Leva esse rolo de gaze, esses negocinho aqui, e compra sabão de coco. Três veis por dia você vai lavar bem a ferida, usando sabão de coco, enrolar o gaze, e pelo amor de Deus, meu filho; nenhuma sujeira nesse local!”. Com a esperança já instalada no coração, o Jô seguiu as recomendações e com menos de quatro meses a perna só tinha uma cicatriz... Uma cicatriz que até hoje é vista, quando a perna está exposta. Tudo não passou de um sofrimento sem sentido, por causa da falta de compromisso com o próximo, por parte dos profissionais que até então eram procurados. Todos tinham preguiça, má vontade, acomodação profissional, e, sobretudo, nenhum compromisso com o ser humano.
Aquela cicatriz que ainda existe, não é a única que o Jô carrega. Muitas outras estão por dentro e pairam nas lembranças de nossa infância; nossa adolescência. Todos nós carregamos muitas cicatrizes de uma história da qual às vezes queremos duvidar, quando a recordamos nos pormenores. O Jô, entretanto, foi quem mais sentiu nos ombros o peso dessa história e foi o que mais tomou para si a responsabilidade de se pôr ao lado de nossa mãe na luta pela sobrevivência de toda a família. Houve fases em que a nossa mãe, por mais que corresse de uma casa para outra, fazendo intermináveis diárias para nos manter, não teria conseguido sozinha. Sem nosso irmão mais velho. Eu tinha minhas virações, mas obedecia aos limites do meu corpo e aos limites impostos pelos moleques mais velhos, os marmanjos infiltrados e temidos nas ruas. Jamais corri todos os riscos necessários à ousadia para vender mais e conquistar os espaços que só eram viáveis para os que não mediam as consequências e não aceitavam que alguém lhes dissesse que aquela rua ou praça, que aquele prédio público, trem, rodoviária ou ônibus era seu.
Devemos muito ao Jô. Todos nós. E nas longas conversas que sempre tive com nossa mãe, depois do início da minha maturidade, ela sempre recordava muitas aventuras, o sofrimento, a vitória sobre a fome, as doenças e tudo o mais. Naquelas conversas, eu sempre vi que seus olhos brilhavam de gratidão quando ela falava das loucuras que o Jô fez, em nome do não que sempre disse às dores daqueles anos... Cicatrizes... Da ferida na perna, das feridas em nossos corações, dos nossos anos mais verdes, e a cicatriz da saudade; a falta que nossa mãe nos faz... Mas ela nos fez felizes. Ensinou-nos a superar. A sobreviver. A sair do poço mais fundo que se apresente. Soube nos prover de valores essenciais ao ser humano, como a honestidade, o trabalho e a não desistência. Somos felizes, porque acima de tudo, fomos nós que tivemos a riqueza e honra de sermos filhos de nossa mãe.

UM CORTE POR SANGRAR


Temos algo pendente; um momento, quiçá,
Um fiapo de carne que ficou no dente;
Uma fibra da fruta que sequer comemos;
Nossos remos precisam conhecer o mar...
Há um sonho guardado na verdade crua;
Um luar afogado na lua sem mel;
Somos flores não dadas depois de colhidas,
Uma vida que segue por duas estradas...
É que nós nos devemos, nem sabemos quanto,
Pode ser que bem mais do que dê pra quitar,
Pode ser que nem tanto, mas a vida cobra...
Precisamos orçar os nossos eus pendentes
Que viraram reféns de nossa indecisão;
Somos uma incisão que precisa sangrar...

CHEGANDO AOS PEDAÇOS


A minh´alma já vem, acolha o corpo
demolido, alquebrado e descomposto,
minha cara sem rosto e sem olhar
sobre os olhos profundos e vazios...
Meu amor chega um dia, tome o flanco;
a lacuna que pede um xis de graça;
venho em branco e preciso desse tom
que me caça no vão de quem estou...
Dá-me um voto e prometo merecer
todo bem que me fazes e me queres;
vencerei a muralha dos meus quases...
Puxarei a verdade, aceita o sonho,
já me ponho a caminho de mim mesmo,
pra chegar onde pensas que me tens...

QUERIDO SACO DE PANCADAS


Jamais levei a melhor nas muitas brigas com o Jô. Mas não podia fugir dele, o mais velho e maior, porque ficaria muito chato, pois eu batia nos menores. Em minha opinião, isso poderia depor contra minha imagem de “brabo” dentro de casa.
Houve um tempo em que o hobby absoluto do Jô era mesmo bater em mim. Todos os dias era pelo menos um pescoção, para não perder o costume nem quebrar a rotina. Demoramos muito as nos tornar os irmãos unidos pelas afinidades literárias e musicais que me poupariam de muitas escoriações antes da ida precoce para o mundo.
Ironicamente, ao mesmo tempo ele me defendia dos meninos grandalhões nas ruas e na escola. Recordo que uma vez, ainda em Brasília, o “Bitelo” me deu uns cascudos e o Jô não teve sossego enquanto não esfregou nas costas do infeliz uma porção de pó-de-mico, e com tanta força, que o grandalhão caiu no pátio da escola, urrando em desespero. As mãos do meu irmão também ficaram esfoladas, mas ele afirmou, entre gemidos e risos, que ainda assim valeu a pena.
Na verdade, o Jô me amava. E amava tanto, que tinha ciúme de qualquer outro punho que acertasse meus dentes ou a “boca” do meu estômago... De qualquer outro pé que me desse uma rasteira ou chutasse o meu traseiro.
Por motivo de força maior; no caso, a força do Jô, eu era simplesmente uma exclusividade: Ninguém mais podia bater em mim... Só ele... O meu irmão mais velho.

BETO PERERÊ


O Beto foi um Saci Pererê de pele clara e duas pernas. Molequinho raquítico, pequenino, mas era mais ágil do que um gato vira-latas; daqueles que atacam panelas nos fogões e ninguém segura, por menores que sejam as cozinhas. 
Depois que passou dos nove ou dez anos, resolveu que nunca mais apanharia dos irmãos mais velhos, dos moleques da rua nem dos parentes adultos. Tornou-se debochado, briguento e muito escorregadio. Quem tentava “limpar a mão” na figura fisicamente frágil, pálida e russa do meu irmão, espumava de raiva: O Beto jamais corria para longe; não tentava fugir do perseguidor, por mais forte que fosse. Ao invés disso driblava, passava por baixo das pernas, rodeava o sujeito e ria dele. Ria muito e com trejeitos exagerados. Ridicularizava e fazia desistir por força do cansaço. Parecia uma sombra; um fantasma; um duende.
Quando não estava metido nessas encrencas ou brigando nas esquinas, nem aí se aquietava: Pendurava de cabeça para baixo em árvores; quebrava pedras britadas com os dentes; dava saltos triplos; pegava cobras vivas, com as próprias mãos, para dar sustos nos outros... Fazia muitas; muitas outras arruaças.
Mas um dia o Beto cresceu... Conseguiu crescer. Driblou também o destino, que muitos previam ser negativo. Passou por baixo das pernas da má sorte. Zombou dos problemas graves, deu a volta por cima, por trás, e chegou ao presente. Bom irmão, bom pai, trabalhador, pacato e pacífico.
Seja como for, mesmo agora não aconselho ninguém a tentar “limpar a mão” no Beto. Ele pode por um momento, só por um momento, que já será o bastante, resgatar o Beto Saci para dar um cansaço no infeliz... Apenas um cansaço.

O TUTI QUE A NETE CONHECEU


A Nete não sofreu muito em minhas mãos. Não era preferência, e sim, questão de fase. Quando ela nasceu, meu temperamento estava meio apascentado e afetivo. Talvez um pouco mais carente que de costume. Lembro das muitas vezes em que a fiz dormir, cantando músicas de ninar, exatamente como bem mais tarde faria com a Nathalia, minha filha mais velha, e como faço com a Júlia, minha caçula. Cantava, contava histórias, ficava olhando seus olhos miúdos, até que não aguentavam mais e cediam confortavelmente ao sono, ainda que ainda que no desconforto das camas adaptadas.
Essa recordação me traz alegria e remorso, ao mesmo tempo. Alegria, por me dar conta de que nem sempre fui mau, na infância e adolescência. Remorso, ao reconhecer que podia ter sido assim com todos os meus irmãos, especialmente as irmãs. A Branca e a Carminha não conheceram, naquele tempo, esse “Tuti” suave, doce, capaz de fazer uma criança dormir, mesmo sendo ainda um pré-adolescente atormentado por tantas dúvidas, revoltas, complexos, medos e tabus. O “Tuti” suave não durou tanto tempo, mas foi o suficiente para que tempos depois a Nete não tivesse apenas lembranças ruins da infância com o seu segundo irmão mais velho.
Ainda bem que pude viver até agora, quando além da Nete, do Vado, do Nem, do Isso, do Beto e do Jô, a Branca e a Carminha me tratam com tanto zelo, amor e respeito, como se eu merecesse. Como se todos eles tivessem tido esse mesmo irmão que lhes faltou de forma flagrante naqueles tempos difíceis e cruciais. Sou feliz como jamais pensei que seria. De que forma eu não sei, percebo que jamais perdi essa família da qual teria inveja se não fosse minha; se eu não tivesse a sorte de fazer parte. Sorte mesmo, porque se dependesse dos méritos, eu hoje não a teria.

VADO RENASCENTE


O Vado era bem pequeno quando contraiu uma doença que eu nunca soube qual foi. Só recordo que ele ficou extremamente abatido. Esquálido. Esquelético. Não comia quase nada, e sempre que o fazia, vomitava. Também não queria ingerir água ou suco. Ficou assim durante meses, e os médicos não o internavam. Diziam que não havia o que fazer, e assim sendo, era melhor ele ficar em casa; terminar seus dias com a família. 
Por essa e outras razões, estávamos na pior fase dos piores anos de nossas vidas. Os remédios, todos eles muito caros, eram comprados porque nossa mãe conseguiu sensibilizar os membros de uma igreja, que resolveram ajudar com os recursos dos dízimos e ofertas. Todo o dinheiro que recebia tanto da igreja quanto de suas diárias em casas de famílias, nossa mãe gastava com os tais remédios e com vitaminas para que o Vado se mantivesse lúcido e de pé. Criada por pais evangélicos fervorosos, foram muitas as vezes em que orou pedindo ao seu Deus que o nosso irmão fosse curado. 
Um dia, crendo que suas orações não eram atendidas por ela estar afastada de sua igreja e por isso não ter crédito junto a Deus, nossa mãe pediu ao Nem, que também era pequenino, apenas um pouco maior do que o Vado, para fazer uma oração. Ela simplesmente apostava na pureza do pedido de uma criança, para pegar Deus de surpresa, vencido pela emoção. Comovido e sem ter como negar. Tratava-se de uma armadilha desesperada, e Deus haveria de cair, se fosse mesmo tão bom. 
Na madrugada do mesmo dia, o Vado ficou com febre muito alta. Bem mais alta que de costume. Começou a delirar, e com a cabeça no colo de nossa mãe, disse que umas crianças o chamavam para brincar na parte externa do telhado da casa. Perguntou, em seguida, se podia ir. Crendo que se tratava não de um delírio, e sim, de anjos que chamavam nosso irmão para o céu, no qual sempre acreditou, nossa mãe, aos prantos, achou melhor assentir: Disse que sim. Que ele podia brincar com os “anjos”, o que para ela, significava o fim do sofrimento do Vado, que já não suportava. Também entendeu aquilo como castigo, e se resignou, por ter achado que podia driblar os desígnios divinos.
Fomos todos acordados para chorar por nosso irmão, cujos olhos fecharam, cuja respiração já não era sentida por nós. Nossa mãe o segurava em silêncio, deixando que as lágrimas escorressem rosto abaixo, mas não esboçou revolta. Todos juntos, atordoados, não pensamos em tomar providências, e com isso, as horas foram passando. Voltamos a cochilar em redor do Vado, e nem notamos o dia, quando amanheceu.
Aquela nova manhã pegou a todos de surpresa: Despertamos do cochilo, talvez da hipnose, com a Voz do Vado, ainda fraca, pedindo comida, o que nunca mais fizera. Ao mesmo tempo, ele se levantou já sem febre, para beber água, o que também não fizera por muito tempo. Ficamos pasmos e felizes, mas temerosos, pois era difícil de acreditar que aquilo acontecia, depois do estado no qual vimos nosso irmão caçula.
Em poucos dias o Vado estava recuperado, sem qualquer explicação para mim. Muitos, com a razão que reconheço e admiro, por tudo em que acreditam, atribuem o episódio a uma resposta divina. Especialmente minha mãe, enquanto viveu acreditou nisso, e sempre a ouvi com respeito e reverência, quando relembrava tudo aquilo e dizia, já sem temor de ser castigada, que seu Deus teve piedade do sofrimento de todos e não suportou as lágrimas e a súplica de uma criança.
Seja lá o que for, no campo da ciência, da natureza, da metafísica ou do surreal, que tenha interferido para o que ocorreu, para mim não importa. Só sei que me sinto feliz por terem passado aqueles anos em que todos nós, cada um a seu tempo, escapamos da morte ao menos uma vez: Por inanição, doença, preconceito alheio, perseguição, rebeldia extrema, manifestações perigosas de revolta e outras razões.
Sabendo que nada sei sobre o que não vejo, e por isso não descarto a hipótese de um dia crer no que hoje não creio, tenho apenas uma certeza: Sou muito grato não sei a quem ou quê, pelos muitos anos de convivência com os meus irmãos, hoje todos vivos, e com a nossa mãe, que há pouco tempo se foi, não sem antes nos ensinar que a vida é um bem precioso e que o amor é capaz de nos dar forças para sobreviver ao que nem sabemos mensurar.
Aos meus irmãos, todos eles, minha gratidão por ainda estarem comigo... Graças ao que não sei, mas isso não importa. Se houver o que saber, saberei no tempo certo, que poderá não ser aqui.

PAU-DE-ARARA


Foi-se a nuvem;
Foi-se o tempo. 
Já faz tempo
Que não chove...
Foi-se a muda;
A semente.
Foi-se o crente,
Foi-se a fé,
Sua prece
Pela safra
De café.
Foi-se arado;
Foi-se enxada;
Foi-se o toque
Na viola,
Na toada
De gratidão...
Foi-se o verde
Até dos olhos
Na touceira
De colonião...
A tarrafa,
Todo peixe,
Foi-se o gado, 
Foi-se o burro;
Duro coice.
Foi-se gente;
Foi-se lida;
Foi-se foice...

AMOR DESAVISADO


Quando a minha emoção esvaziar,
meu afeto esquecer teu endereço,
minha mente avisar ao coração
sobre o preço extorsivo de querer-te...
No momento em que a dor se desfizer
ou apenas deixar de ser por ti,
por saber que não fui senão brinquedo;
um enredo banal dos teus caprichos...
Nesse dia em que toda solidão
tiver cura no vão desta carência
que meu íntimo já terá provido...
Ficarás no passado e serei livre,
descerás do parquinho que montei
no terraço do amor desavisado...

A VIA-CRÚCIS DO LIVRO LIVRE


Chegamos ao ponto em que os ambientes que mais rejeitam livros livres e "livradores", quando podem fazê-lo, são as escolas. Exatamente as escolas, que têm a função de fomentar a leitura, principalmente a não obrigatória e oficial, para contribuir com a formação de cidadãos leitores... Leitores por prazer, porque terão aprendido que a leitura não é uma obrigação; que o livro não é uma canga, uma ferramenta de tortura nem objeto de capricho formal imposto pelos que mandam.
O grande problema, origem do mal supremo deste século é que o preconceito contra os livros livres e os "livradores" (aqueles que plantam, editam e principalmente os que distribuem livros não adotados formalmente) não se manifesta no aluno, que só é a vítima terminal dessa cadeia contra o saber democrático. Tal preconceito é parido no poder público central; depois imposto às secretarias de educação e coordenadorias de ensino. Logo à frente, adotado pelas direções escolares e os professores. Os alunos, a depender da escola, nem chegam a saber que existe a leitura extra-quadro... O livro não receitado como paliativo amargo; "remédio sem remédio".
É preciso ruirmos a ignorância dos que regem, coordenam, distribuem ou vendem o ensino. Também é preciso que se vença o esquema de favorecimento e corrupção entre as editoras apadrinhadas pelos poderes e os grandes executivos da educação. Sobretudo, é urgente que os educadores essenciais (docentes e diretores escolares) assumam a identidade que lhes cabe, de educadores essenciais, e se permitam educar além do formal; do formol; da fossilização. Quebrem o gelo e o gesso estabelecidos pelos primeiros escalões, ainda que às vezes isto signifique um risco aos seus postos de possível confiança política.
O que esses educadores, das redes públicas e privadas não podem é continuar absorvendo e reproduzindo a ignorância e a ditadura daqueles superiores hierárquicos cujo compromisso não é exatamente com a educação. É, acima de tudo, com o poder, com o próximo pleito eleitoral e o monopólio das editoras que financeiramente os recompensem mais.

ESPECIALISTA EM ADEUS


Tenho sempre um aceno escondido na mão;
um adeus estocado no vão das entranhas;
sei guardar esse dia na luz dos meus olhos,
desejando que a vida jamais o confirme...
Não queria saber, mas finalmente sei
que os adeuses nasceram para serem ditos
sussurrados, aos gritos, em silêncio atroz;
um adeus é uma voz que dispensa rumor...
As paixões que me cegam logo restituem
a visão instintiva das intuições;
vejo além dos meus olhos como tudo é findo...
Sendo caso de amar, nem aí trancafio
meu adeus por um fio quando quando já suplica
pra fechar uma história que chegou ao caos...

BRASILIDADE


Ama chocolate
Só de coco.
Também gosta de cocada
De mamão.
O seu café da manhã
Não é café.
É vitamina de melão.

JUROS DE VIDA


Hei de seguir o meu tempo até o desfecho. Decidi que na ida para não sei nem quero saber onde, a minh´ alma terá sempre a minha idade. Quero que os sulcos do meu corpo desvendem toda a história que os meus passos compõem. Não quero arrancar nenhuma ruga deste livro exposto que me tornei e não aceito fraudar. 
Já fui moço, colhi as flores e as farpas que a vida pôs no caminho da mocidade bem vivida. Meus bônus estão gastos, mas tenho certeza de que meus rastos podem ser seguidos por muitos. O que tenho de melhor para transmitir não vai além do fato simples de que fui quem fui como ainda sou quem sou... Como já provei o que tinha por provar não para os outros, mas para mim próprio.
Tenho certeza de que a vida hoje me leva como recompensa pelo quanto a levei sem pedir uma pausa. Um só minuto para não viver em meio ao turbilhão de uma existência que me fez todas as surpresas possíveis. Viver o que viesse foi uma causa que sempre defendi. Foram muitas as vezes em que fugi de querer fugir, quando o mundo pareceu mais feio, mais sombrio e sem perspectiva.
O que me resta é viver o meu saldo positivo. E assim farei, sem deixar a vida restante no vermelho. Cheguei ao ponto em que tenho certeza de uma verdade: A dádiva do estar vivo, apesar das mortes que visitei, é meu prêmio cotidiano. Cada dia que nasce representa o direito a um novo saque excedente.

PRONTO-SOCORRO


Nunca mais deixarei que alguém me alugue
Pra passar umas férias afetivas;
Descansar emoções na minha calma;
Ter minh´alma por falta de algum corpo...
Deixarei de ceder meu ombro amado
A quem antes queria um colo amante;
Quem me viu porque nada mais havia;
Fui estante fugaz na sua história...
Nunca mais serei porto eventual
Para naus que perderam capitães,
Solidões que ficaram sem escolha...
Resolvi me querer como não vejo
No desejo contido e conformado
De quem cede; não quer; só deixa estar...

UM AMOR A SER VIVIDO


Se for tudo me abrace; dê partida,
Para logo deixarmos de ser dois,
Nossas vidas desaguem numa vida
Que não tenha incerteza do depois...

Mas me poupe das linhas de seus nós,
Qualquer cena encruada e mal servida;
Se for meio nem gaste a sua voz,
Não defina uma coisa indefinida...

Tudo e nada; os extremos caem bem;
Para tudo estou pronto a ir além
Do que os olhos divisam no infinito...

Se não for, fique aí; já estou no nada;
Minha vida se gasta nessa estrada,
Meu amor terá sido apenas mito...

GENTE MAL PASSADA


Muitos ficam na idade já vencida;
Não se lembram do embarque pro futuro;
Dão à vida o bilhete de passagem,
Mas não vencem o medo de voar...
Muita gente não sai do aeroporto,
Vive apenas pra ver os aviões,
Recompõe os senões do seu estágio
E jamais efetiva o caminhar...
Vai o tempo, as carcaças desprovidas
Gastam vidas vazias de vivências;
Frutos podres que nem foram maduros...
Tantos viram estátuas semi-vivas,
Monumentos tombados para os pombos;
Reis e divas de limbos defumados...

ÓTICAS DE BELEZA

Adultos gostam porque acham bonito. Crianças acham bonito porque gostam.

HONESTIDADE FORÇADA

Quem só não rouba para não ser preso, deveria ser preso só para não roubar.

terça-feira, 20 de novembro de 2012

BEIRA-CAOS


Fazem falta os amores bem vividos,
As libidos ungidas por consenso,
Quase penso que as dores em comum
Que sentimos por seja lá quem for...
Não existem saudades em meu peito,
Se me lembro de alguém que amei sem eco;
De quem ontem me fez nutrir carinho,
Desnutrido; sozinho; à beira-caos...
Desencontros não fazem qualquer falta;
Minha pauta, o roteiro do meu ser
Sempre anula o que não aconteceu...
O menor dos momentos dá saudade,
Só não gasto lembranças iludidas;
Emoções desprovidas de momentos...

QUANDO AS RELAÇÕES VIRAM JOGOS


Sejam parcerias vitais, amizades, amores, não importa... Nas minhas relações em qualquer um desses campos, valorizo criteriosamente o começo, pelo qual antevejo dias futuros... E toda vez que o início de uma dessas relações assume características próprias de jogo, deixo a mesa de negociações afetivas que se desenha, sem sequer olhar para o lado. É claro que sempre dou a segunda chance, mas apenas a segunda, porque sou do tipo que aprecia estar com a razão. Faço questão da consciência de que me fiz de tolo, para que os espertos que cruzam meu caminho se atrapalhem consigo mesmos e não tenham qualquer chance de argumentar contra o meu silêncio. Os minutos eternos de silêncio que lhes dedico em respeito ao nada que doravante representarão para mim. 
Quem joga com relações tem um vício exacerbado e sempre perde para si próprio, viciando a qualquer incauto que se aproxime, caso não perceba em tempo a cilada em que poderá cair. Faço-me de tolo, mas não sou. Sei entrar e sair na hora exata. Se jamais apostei dinheiro nos jogos lotéricos oficiais, nos cassinos, bingos e bancas de bicho, por que razão apostaria um milésimo de minha boa fé, uma fagulha do meu afeto em pessoas que se tornaram máquinas de apostas? Pessoas viciadas em viciar, numa tentativa contínua e vã de se auto afirmarem diante do espelho e do mundo que as cerca? Sinto muito; mas quem queira se aproximar de mim, verifique primeiro se não corresponde ao retrato que acabo de pintar... E se acaso corresponder, procure um profissional; faça um bom tratamento e só depois me procure. 

ESCRAVO DE SER LIVRE


Minha sina é ser preso à liberdade;
suportar as algemas da soltura;
rastejar nas alturas, não ter solo
pra firmar estes pés que apenas voam...
Uma dura verdade o sonho exposto;
a fiel utopia enfileirada;
levo todo meu nada sem pra onde,
quem ou quando; nenhuma explicação...
Sou escravo da carta de alforria
que alcancei de nascença e natureza;
correnteza; corrente que me arrasta...
Meus amores me arranham na passagem,
minha casa é pastagem sem cercado,
meu estado nasceu sem capital...

DIRETORES ESCOLARES E REJEIÇÃO A LIVROS


Uma das minhas não muitas atividades extras é o contato com escolas, para realização de feiras literárias. Um trabalho do qual gosto muito, porque julgo levar aos alunos dessas escolas um evento importante; fundamental para sua formação como leitores e cidadãos do mundo. Pouco importa se a criança vai ou não comprar livros, o simples contato com os inúmeros títulos disponíveis e a vivência que a feira literária lhes proporciona já é algo bastante lúdico. Levamos cultura e possibilidade; sonho e fomentação do hábito e do desejo de ler.
Mas ninguém pense que se trata de um trabalho fácil. Por estranho que seja, são muitas as escolas cujos diretores têm rejeição a qualquer evento cultural. Especialmente quando a estrela desse evento é o livro. A literatura. Surgem tantas desculpas, que seria enfadonho enumerá-las. Desculpas que não são dadas, pelo menos com tanta convicção, quando quem vai à escola é um vendedor de bugigangas, de produtos piratas  e afins, que são prontamente consumidos por grande parte dos educadores, às vezes à vista dos alunos. 
E nesse trabalho de propor feiras literárias, ouço de alguns educadores coisas das quais duvido. Hoje mesmo, a diretora de uma escola municipal no bairro Pau Grande afirmou que não gosta de feiras literárias, porque fazem o aluno sonhar com o que não pode ter. Ou seja: Sonhar com livro. Leitura. Conhecimento. Argumentei que o evento por si só já é importante para o aluno, e que as escolas os levam à bienal para comprarem ou não livros, pela importância do contato com os títulos e com quem escreve, edita ou distribui. Salientei que no meu caso, levo até à escola um pedacinho de bienal, sem qualquer imposição de compra ou apelo comercial. Sua contra argumentação foi espantosa: "A minha escola, não; não levo nenhum dos meus alunos à bienal. É perda de tempo". 
É claro que desisti. Tenho parceria com a Secretaria de Educação da cidade, para realizar tal trabalho, mas creio que não vale a pena realizá-lo em uma escola que só abriria as portas por força da obrigação. Uma escola cuja direção não fomenta nos seus alunos o desejo de ler e ter livros. Ao invés disso, fomenta em suas cabeças, em seus corações, o conceito de que o livro e o "luxo" da leitura não estritamente didática são realidades distantes. Não pertencem ao mundo de alunos pobres; que frequentam escolas da rede pública.
Estupefato, mas educadamente me retirei. Não havia mais nenhum argumento que pudesse derrubar a muralha daquela ignorância. Não podia dizer àquela educadora o que pensava dela, sob pena de responder judicialmente. Nem podia lhe perguntar o que está fazendo na direção de uma escola, pois ela mesma não saberia me responder.

LAÇOS QUE DÃO NÓS


Todo agora é um aviso do depois;
É o início que fala sobre o fim;
Uma vida que tende a ser a dois
Requer muito critério antes do sim...

Essas pedras da estrada vão pro rim,
Quem amamos se torna o nosso algoz,
Quando amar é doer; e mesmo assim
Persistimos em laços que dão nós...

Viva cada episódio vendo além;
Não apresse uma prece, o seu amém
Só é sábio no justo fechamento...

Nem deguste uma sopa não servida;
Um olhar adequado sobre a vida
Pode até decifrá-la num momento...

SENA & SENA EM CENA


Depois de um tempo em que saíra de casa comecei a me aproximar do Jô, por uma grande afinidade: Eu me afirmava como poeta; e ele, como cantor e compositor. Ambos nos encontrávamos para trocar opiniões, e com o tempo, resolvemos que faríamos recitais de poesias e músicas em escolas. Adotei como pseudônimo Demétrio Sena, que na verdade é meu nome sem o recheio do Pereira. Ele também arrancou, além do Antonio, o antiartístico Pereira. Virou Carlos Sena.
Moleque metido a empolado, eu dei à dupla o nome SENA & SENA. E ao recital, o pretensioso título SENA & SENA EM CENA. Vendíamos ingressos datilografados, cortados a tesoura, e vendíamos bem. Enchíamos plateias escolares de vítimas interessadas nesse tipo de espetáculo. Fazíamos relativo sucesso de público. 
No entanto, começamos a exagerar com repetidas apresentações nos mesmos espaços. As mesmas pessoas eram constrangidas a comprar ingressos, porque seus rostos se tornaram conhecidos e nunca mais lhes demos sossego. Novo recital, nova investida nos velhos “fregueses”. Demoramos a perceber que já estávamos enfadando as pessoas, levando-as inclusive a fazer uma sutil meia-volta quando nos viam pelas ruas. Sabiam que a nossa presença representava ingressos a serem comprados para um espetáculo que já dera o que tinha para dar.
Partimos para outros lados. Outras cidades. Fomos novamente bem sucedidos, porque nos apresentamos como novidade, aprendemos a variar repertório (mesclar músicas e textos de autores consagrados), passamos a trocar as peças de nossas autorias e também amadurecemos nossos estilos. Nossos textos e músicas se tornaram melhores, tanto quanto as técnicas de recitação e canto.
Acho que hoje não é mais suplício nos ouvir. O Jô, que agora se assina Antonio Sena é um grande cantor e compositor. Minha definição de grande não tem o contexto do sucesso popular, da vendagem ou da incursão nas mídias. Falo da qualidade superior de sua obra. Ele hoje canta em grandes ambientes, lonas culturais e eventos, distribui seus CDs independentes e tem outra grande felicidade: Seus filhos Vandré Luan e Vaniele Bethânia também são músicos. Músicos e professores. Quando não estão lecionando, acompanham o pai nas aventuras musicais.
Moramos em cidades distantes, mas sempre que podemos nos juntamos para relembrar a dupla SENA & SENA, de modo maduro e bem planejado, para fazermos alguns saraus em escolas onde coordeno articulações culturais, pela Secretaria de Educação do meu estado. Mas ninguém se preocupe... Já não cercamos vítimas indefesas, pelas ruas, com os velhos ingressos datilografados, cortados a tesoura nem com a pretensiosa e ameaçadora epígrafe: SENA & SENA EM CENA.

SABEDORIA E SABER


A maior diferença
entre o sabedor
(ou sabichão)
e o sábio,
é que o sabedor
(ou sabichão)
não sabe
que não sabe tudo...
O sábio sabe.

A MAMADEIRA DA RANCA


Fui um adolescente grosseiro; truculento; intolerante com os meus irmãos. Queria sempre silêncio e quietude numa família tão grande, que habitava pequenos espaços, e a minha forma de me fazer “respeitado” não era outra: Invariavelmente aos gritos e solavancos. Quando não conseguia intimidar com tais recursos, batia. 
Choros e manhas eram quase fatais para o menino individualista e frio que fui. Levavam-me à loucura e me deixavam mais agressivo do que já era, preocupando ainda mais a minha mãe. Ela se desdobrava em cuidados para impedir minhas agressões aos menores, e ao mesmo tempo não ter que me dar uma surra. Tinha muita pena dos filhos, por causa das privações, e passou a vida inteira tentando resolver as coisas na base da conversa, dos conselhos, das explicações e dos próprios exemplos pessoais.
A Carminha, a Nete e a Branca passaram maus momentos em minhas mãos. Naturalmente mais sensíveis e frágeis do que os meninos, elas me agitavam sobremaneira, com manifestações chorosas pela vida que levávamos. Lembro que a Branca, já bem grandinha, não desapegava de uma velha mamadeira. Chorava muito, querendo leite a toda hora, o que não era possível. Numa dessas ocasiões, tomei-lhe a mamadeira e joguei bem longe, no meio do mato, para me certificar de que logo depois não seria recuperada.
O que posso dizer a meu favor, mesmo assim sem merecer indulto, é que minha consciência doía, por não querer ser assim. Essa foi uma das razões pela qual saí de casa bem cedo, antes da idade adulta, para ver se conseguia mudar. Trabalhava em pequenas firmas, tive guarida de um pastor batista para dormir numa quitinete anexa ao templo de sua igreja, e minha mãe, por mais que pedisse a minha volta, não conseguiu me persuadir. Por fim, acabou percebendo meu juízo; minha mudança de comportamento. Viu que não fui seduzido por nenhum vício nem pelas facilidades criminosas de ganhar dinheiro. Ia direto ao meu encontro e conseguiu aliciar muitos cúmplices adultos e confiáveis, que me pajeavam sem meu conhecimento e a mantinham sempre a par dos meus passos.
A outra razão que tive para sair de casa foi o desejo de ajudar financeiramente a sustentar meus irmãos, não ajudando a consumir, porque sabia que ganharia pouco. Mentia, dizendo que estava ganhando bem, pois minha mãe não aceitava qualquer ajuda que pudesse me deixar em falta. Foi difícil, mas tudo se ajeitou no passar do tempo.
Depois de uns anos, voltei a me juntar aos meus irmãos e fui recebido com muito amor. Entendi prontamente que fui perdoado por todos, especialmente por minhas irmãs, pela truculência naqueles tempos de privações e temor do futuro. Fui também perdoado pela distância que acabei criando entre nós. Mesmo não merecendo, sou até tratado com certo mimo e com aquele respeito que só temos por quem admiramos. Meus irmãos me admiram, sendo eles admiráveis. Eu é que lhes devo (e tenho) admiração, devoção, reconhecimento e todo amor que a vida possibilita para vivermos bem.
Quanto à Branca, depois de pensar bastante, cheguei à conclusão do que fazer. Sei que na meia idade, mãe de duas filhas, uma delas adulta, minha irmã já não mama. No entanto, resolvi lhe fazer um mimo que pode me resgatar aqui dentro; no flanco de minh´alma: Vou lhe dar de presente uma nova mamadeira.

SOLIDÃO E TABU


Um querer sem querer que me despacha e busca;
Uma luz que me ofusca e faz olhar além;
Minha essência e meu corpo se agredindo a esmo
Neste mesmo desejo em extremos opostos...
Eu te quero e não quero, meu desejo cresce,
O gemido é uma prece que o céu jamais ouve,
Presto culto à miragem do amor nunca feito
E me pego de jeito ao achar que te alcanço...
Esta culpa que chega via sudorese,
Quando sou acusado pela solidão;
Pelo fogo da mão que se fingiu de ti...
Este sono sem freio que me abate agora,
Para ver se devasta o sentimento avesso
De quem sabe que o preço vai além do fundo...

SOB O MITO DA CRUZ

É algo bastante cômodo combater inimigos de neon, já previamente vencidos pelo mito da cruz. Um herói dessa estirpe não precisa de coragem, pois peleja contra nada e ninguém.    

NÃOS OCULTOS


Sei do não que se oculta num sim de soslaio,
num balaio de olhares; meneios; trejeitos;
ouço cada palavra do discurso mudo
cujo nada diz tudo e não discuto além...
Quero sempre o querer de quem ouve a proposta,
quem aposta em meus olhos e ganha comigo,
nunca o jogo de falas de quem não declara,
mas me cerca; me apara; me faz retornar...
Não aceito que aceitem por temor velado,
meu projeto, meu sonho, meu dado na mesa;
neste caso prefiro a leitura das costas...
Tenho apego à palavra que soa incisiva,
nasce viva; desnuda; legível; direta;
linha reta pros olhos, ouvidos e mente...

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

FILHO CONTRITO

Sempre que desejava realizar uma nova travessura na pequena casa de Gramacho, em Duque de Caxias, nossa mãe contava com o Izo, o terceiro dos nove irmãos. Nós, os outros, protestávamos e repetíamos advertências inúteis sobre a porta que não ficaria bem, a parede que não podia ser quebrada e a janela velha que não combinaria com o espaço, entre outros itens. O Izo, não. Ele atendia prontamente. Saía de onde estivesse, para fazer o que não daria certo e depois desfazer, mais tarde refazer o desfeito, e assim por diante.
O Izo é o irmão mais doce de todos nós, mesmo sendo o mais forte fisicamente, o menos letrado e até o mais truculento para realizar pequenos reparos e serviços. É um touro, como dizem muitos, no que se refere à força descomunal que o leva, por muitas vezes, a cometer abusos como carregar sozinho, geladeiras e móveis, nas mudanças em que sempre ajuda quando é chamado. Tudo isso, combinado com uma doçura, uma gentileza, um carinho que o mundo no qual vivemos perde a cada dia. No rosto, aqueles olhos miúdos que propagam a grande alma de um homem raro para os dias de hoje.
Para ser verdadeiro, devo confessar que os meus irmãos são todos especiais, cada um ao seu modo. Todos bem educados, gentis, amorosos, com suas virtudes e defeitos, mas as virtudes maiores do que os defeitos. Creio, com toda a sinceridade, que sou o menos dotado. Realmente não reconheço em mim essa grandeza que vejo em todos eles. Só peço licença para dizer que o Izo é surpreendente. Quando achamos que suas qualidades já se tornaram previsíveis, ele surpreende outra vez... E outras vezes.
Pois foi o Izo, com toda sua fortaleza física, o que mais me preocupou quando nossa mãe morreu. Não; ele não chorou compulsivamente, não protestou contra os céus nem ostentou sofrer mais do que todos nós. Mas os seus olhos, aqueles olhos miúdos de menino eterno denunciaram que o seu pesar quase o levou junto com nossa mãe, para talvez quebrar as paredes do infinito, desmontar e remontar móveis, trocar janelas novas por cacarecos e realizar muitas outras loucuras, sob protestos dos outros seres de lá.
Para nós, os outros, nossa mãe foi a melhor das mães. Sobre todas as mães. A heroína que sublimou todos os clichês que a sociedade cria para generalizar o ser humano. Foi tudo pra nós... Mas para o Izo, foi além. Para ele nossa mãe foi santa, esteve sempre num pedestal. Podia tudo e tinha todos os direitos, inclusive o de ser injusta, se assim quisesse. Nesse critério de adoração suprema, sobre-humana, o Izo já mantinha nossa mãe nas alturas; no infinito; num plano superior... Ela não precisava morrer.