segunda-feira, 25 de maio de 2015

MEMÓRIA DO ÂNUS


Demétrio Sena, Magé - RJ.

Por ser pobre como era, Francisco Sem Sobrenome muitas e muitas vezes limpou a bunda com sangue. Sangue de guerras e conflitos. De gente assassinada. Dos mortos e feridos em hecatombes, terrorismo e protestos reprimidos.
Limpou a bunda com a ditadura. Com a instituição do AI-5. Sujou de bosta os prisioneiros políticos e os governos militares em suas fardas engomadas. Pôs coliformes fecais nos discursos patriotas da direita, nos informes contidos da mídia escassa e amedrontada e também nos manifestos clandestinos da UNE. Por absoluta miséria, sua bunda foi democrática; impunemente democrática em tempos de repressão.
Não acreditava que pudesse, mas viveu o bastante para limpar a bunda com a anistia política. Com o retorno ao Brasil, dos políticos e os jornalistas; dos artistas e os escritores. Dos milhares de outros exilados em todo o mundo. Sem nenhuma cerimônia, esfregou na vala do seu corpo imundo e sem tratamento as mais famosas caras e bocas. Inclusive de presidentes da ONU e da UNESCO. De ganhadores do Nobel da Paz. Dos mais expressivos líderes religiosos do planeta e daquelas famosidades repentinas que se autointitulam célebres.
Cansado, idoso e sem qualquer esperança, Francisco Sem Sobrenome viveu até bem pouco tempo, ainda pobre. Muito pobre. Por trágica ironia, recentemente limpou a bunda com tanta, mas tanta corrupção mesclada com promessas de um país melhor, que nem soube como suportou! Isso foi mais duro do que a repressão, para ele que acreditou tanto na democracia e seus ícones, agora no poder, todos ladrões. Poluiu mais ainda o seu canal, com as novas formas de mentira, hipocrisia e desgoverno.
Limpou a bunda, como sempre haverá quem limpe, com a fome no Brasil e no mundo. As epidemias. O avanço da violência. Balas perdidas, revoltas populares e poucas; bem poucas notícias boas, porque boas notícias nunca circularam muito. 
Dia destes, Francisco Sem Sobrenome limpou a bunda e morreu. Não sei se de velhice ou intoxicação anal por tanta informação imunda. Só sei que ninguém vai limpar a bunda com sua morte. Afinal, pessoas como ele passam em branco pela vida. Mais em branco do que papéis higiênicos de luxo, cujos rótulos nunca foram lidos por bundas indigentes.

...   ...  ...

Respeite autorias. Ao publicar o que não é seu, sempre cite o autor.

Nenhum comentário:

Postar um comentário