quarta-feira, 16 de setembro de 2020

NO XADREZ DO PRECONCEITO

Demétrio Sena - Magé 

Já fui alvo de muito preconceito. Sempre os venci. Ainda os venço, porque os preconceitos nunca desistem. Indivíduos e grupos preconceituosos vão e vêm o tempo todo; são eles os que mais exercem o direito de ir e vir, nesta sociedade que os valoriza e multiplica vertiginosamente. O pior de tudo, é que tenho verdadeiro afeto por algumas pessoas que, mesmo tendo por mim o mesmo afeto sincero e profundo, lá no fundo está o preconceito... nestes casos, um sentimento que se manifesta educada e carinhosamente... que não indefere ou desqualifica o quanto a pessoa me quer bem, mas deixa implícito que preferia que eu fosse diferente... até que fosse quem sou, mas quem sou não fosse como sou. 

O que não consigo vencer é o preconceito como um todo, ao ver quantos danos ele causa em um mundo que viveria muito melhor, se o ser humano se aceitasse como igual... ninguém se olhasse como pior ou melhor; não houvesse vítima nem opróbrio. Mesmo com gostos, talentos, ofícios, visões de vida e mundo, filosofias e até realidades econômicas diferentes (que não deveriam ter disparates), as pessoas poderiam se completar, formar um mosaico social, se reconhecer como um todo, para que o sentimento de harmonia garantisse a todos o bem viver. Perceber esse sentimento à minha volta - ou à minha frente -, soa bem mais terrivel do que me sentir vítima pessoal de qualquer forma de preconceito.

Até nos grupos formados para cultivar em momentos à parte os mesmos dons, crenças, filosofias, sonhos, desejos... ou fortalecer profissionais do mesmo ramo (e a formação desses grupos é legitima, dentro das propostas iniciais), existe o preconceito. Aí as propostas iniciais perdem o sentido. Se o preconceito entre os que se julgam diferentes é monstruoso, a monstruosidade se multiplica no preconceito entre os que se dizem iguais. Os que já estão lá se digladiam, os que não estão  e têm semelhanças com os que entraram a muito custo já não entram, e dessa forma o preconceito se reafirma e se agiganta sem limite. A fogueira das vaidades e o personalismo garantem os estragos do sentimento matriz.

A sociedade, como um todo, está cheia de preconceitos. E se já é difícil para mim, aceitar os preconceitos da sociedade supostamente aberta, não me convidem a compor nem tentem me manter em sociedades fechadas onde os mais simples não entrem, apesar dos perfis compatíveis... ou onde os mais simples que entraram, por motivos excepcionais, não tenham vez e voz. Estão lá como plantas ou agregados numéricos que devem obedecer e agradecer pelo direito à obediência, pois a sua presença é cota... e toda cota, na opinião das classes sociais dominantes, é prestação de favor.

Quem conhece quarenta graus de temperatura com sensação térmica de sessenta, entenderá: Tenho 59 anos de vida, com sensação existencial de 200. Vivi quase tudo; venci meus complexos e fiz ou deixei de fazer o que desejei. Não preciso de quase nada. Rejeito ambientes preconceitosos, ainda que o alvo de preconceitos não seja eu. Mas aprendi a ficar, se depender de mim, porque sei que me cumpre a luta pacífica pela conscientização. E sabedor de que o preconceito evoluiu suas práticas, não me permito fugir para depois dizerem que me vitimizei. Desenvolvi a sabedoria de obrigar o preconceito a mostrar a cara, se assumir e me tirar da corporação, sem eu ter dado qualquer motivo que o justifique.

CHURRASCO

 


sexta-feira, 4 de setembro de 2020

URUBUS DA CULTURA

Demétrio Sena - Magé 

Jamais me recuso, quando posso, a me dispor financeiramente para ser incorporado a uma causa cultural popular ou altruísta... compor uma classe ou grupo relevante, muito embora eu sempre possa bem pouco, por ser pessoa de condições econômicas modestas. Como tenho braços, mãos, algum tempo livre, boa cabeça, e dizem que tenho atributos culturais, utilizo-os repetidamente onde ninguém use uma causa coletiva, uma ingenuidade exposta ou deslumbramentos de um semelhante, para colher status ou benefícios pessoais.

Mas ninguém conte comigo, em nenhum meio e contexto, como alguém que se preste a comprar elogios, pagar por acesso a pódio e para ser considerado vip; um dos melhores; talvez o melhor. Não daria um centavo por uma vaga em qualquer elite; a menor apologia ao meu nome; nenhuma honra ao mérito em papel, placa, outro objeto. Só aceito felicitações e reconhecimentos naturais que não me ponham acima de nenhum semelhante. E se existem valores pessoais que movimentem os financeiros, que tais valores não onerem, mas recompensem quem os tenha. Ou serão simplesmente valores invertidos.

Aceitar essa forma viciada, espertalhona e sobretudo exploradora, de reconhecimento, seria contribuir com os preconceitos que me constrangem... fomentar criação de guetos... ajudar a expandir as desigualdades sociais, que já são imensas e fartas. Seria me juntar aos que mostram às pessoas de condições econômicas ainda mais modestas do que as minhas, que o mundo não é para todo mundo... a sociedade é antissocial. Que talento e dinheiro têm que andar lado a lado, atendendo às "devidas" proporções. 

São inúmeros os talentos que produzem arte à margem da fama, do poder econômico - geralmente ligado ao político - e do alcance de olheiros ou mecenas. Talentos aos quais só chegam os mesmos aproveitadores; vendedores de medalhas, menções honrosas, cotas e vagas em grupos onde ficarão também à margem. Ninguém que os reconheça como prestadores de serviço; detentores de produto; proprietários de um bem precioso; profissionais respeitáveis.

GUERREIRO INTRUSO