sábado, 25 de agosto de 2018

PRECONCEITOPATIA


Demétrio Sena, Magé - RJ.

Você pode, sim, ser preconceituoso. Não há lei contra sentimentos, porque sentimento é doença de foro íntimo. O que você não pode é fazer seu sentimento romper as grades do foro íntimo e punir justamente o alvo. Se alguém tiver que sofrer ou ser punido pelo seu preconceito, seja na forma da lei ou na fôrma do silêncio, para não enfrentar a lei, esse alguém é você.

quinta-feira, 23 de agosto de 2018

VALE VIDA


Demétrio Sena, Magé – RJ.


Uma vida só vale seu tempo cumprido
entre sonhos, ações, utopias, verdades,
o cupido, as paixões, desafios aceitos
e as quedas seguidas de novos perigos...
Não há mundo que valha um só giro no espaço
se não for pra causar as vertigens de praxe,
pra borrar nossa guache, nossas aquarelas,
nos fazer insistir e pintar outros quadros...
Todo tempo se cumpre com horas feridas,
porque vidas precisam afrontar a morte
ou serão evasivas; vazias de causa...
Vale a pena viver sem certeza e promessa,
sem a peça que sempre nos falta encaixar
e assim desfazemos pra fazer de novo...

MEDO PATERNO DO MUNDO


Demétrio Sena, Magé – RJ.



Sempre me guardo em cuidados extremos e profundas incertezas nas questões relacionadas a filho. Tenho todas as seguranças do que digo, penso e faço em outras áreas, mas me desarmo nesse ponto. Deixo de ser vidente ou mago, e não encontro aquele velho estribilho de se cantar aos quatro ventos, que tudo que será o que for; que tiver mesmo que ser.
Nessas questões de filho, me dá um medo instintivo do mundo. Meu amor me faz inquieto; não se acomoda no coração que há muito não bate por mim. Meus conceitos paternos antiquados ferem a última moda. Não seguem esses padrões que ditam os afetos desapegados, ressequidos e práticos inerentes aos tempos que atravessamos.
Perdido no tempo, acredito na infância guardada pelos medos honestos de quem tem filhos. Na criança mantida em sua justa idade. No amadurecimento agregador de valores que ninguém aprende sem critérios essencialmente humanos. Aposto mais na qualidade afetiva e presencial do que nas técnicas frias e remotas da educação prática e desapegada.
Tenho a mente fechada para questões de filhos. Os filhos meus e os do mundo. Não consigo ver sem espanto a criação dispersa e a terceirização. A proteção vazada e a confiança extrema no caráter e na intenção do outro em relação às nossas crias. Meu coração aberto não consegue vencer minha mente fechada nessas questões relacionadas a filhos.

domingo, 19 de agosto de 2018

A MODERNA IDADE MÉDIA

Demétrio Sena, Magé - RJ.


O assédio afetivo daquela pessoa que nos quer tão bem que não conseguimos crer, nos confunde. É afetivo, mas o nosso temor nos arma e decide que é sexual. Especialmente pelo excesso de confiança depositada em nós, que faz crer numa confiança igual como resposta, quando não temos a mínima condição de corresponder. É aquele conjunto de atitudes e olhares sinceros que fazem bagunça em nosso porto seguro. Fazem ruir o muro da solidão confortável que se tornou rotina doentia, por ser excessivamente providencial.
Temos um medo incomum de quem chega sem rodeios, meias palavras,  camuflagens, e com a mais franca ousadia de manifestações extraquadro. Com presença ostensiva cujos fins não sabemos discernir. Enxergamos nas amizades desarmadas e gratuitas o mundo que um dia nos feriu. A sociedade que desmantelou nossos conceitos de boas intenções e nos fez desistir do ser humano, como se fôssemos a preciosa sobra do que havia de bom sobre a terra. Por isso nos guardamos para comungar tristemente com pessoas portadoras das mesmas marcas que trazemos na alma. Indivíduos temerosos de tudo e todos, como nós. Uma sociedade anônima comprimida. Prisioneira dos freios, das permissões previamente combinadas e dos alarmes antissurpresas. Medrosas do caráter diverso e das expectativas sobre o outro.
Não estamos preparados para o bem querer informal. Para romper o fundo imensurável do poço acomodado em águas imutáveis. Apostar no afeto imprevisível que pula nossa janela; confiar na irreverência dos laços que avançam sinais e avisos, e no fim das contas fazem bem, porque tudo foi por bem. Não houve o que atentasse contra nossa integridade física, psíquica e moral. Nada foi como adivinhamos que seria e por isso julgamos, condenamos e resolvemos aplicar precocemente a pena do afastamento, a frieza ou retaliação.
Os desempenhos sociais deste século confuso que se transformou numa espécie de moderna idade média nos deixaram assim. Fecharam todos os olhos para os bons espíritos ainda existentes. Os tesouros que se ocultam em seres de caráter inesperado para os preconceitos que os excessos do pânico produzem. O maior dano destes tempos é o de não vencermos o dano de achar que tudo é dano e transformarmos nossas trajetórias em uma sucessão de perdas humanas que a generalização não perdoa.

INTENÇÃO

Demétrio Sena, Magé - RJ.

Esta mão que procura se ater aos papéis
e às pobres canetas que percorrem milhas,
às fiéis dobraduras pelas quais me faço
moderar os impulsos que chegam aos poros...
Mão heroica e silente que ajeita os cabelos,
faz um breve carinho no livro já lido,
pra mentir pros apelos e driblar a voz
da saudade que tenho de quem nunca tive...
Mas não tenho poderes pra lutar sem fim
contra mim ou meu sonho do que não tem vez,
pois então que assim seja como sempre foi...
Minha mão tem ciúme dos meus pensamentos,
mas acaba vencida e se deixa levar
nos momentos mais rijos desta solidão...

sábado, 18 de agosto de 2018

BASTA


Demétrio Sena, Magé - RJ.

Aprendi a conter os meus rompantes
de carinhos, cuidados,atenções, 
meus instantes de quando sou notório
aos teus olhos de pouco acolhimento...
Resolvi me afastar das tuas fugas;
teus temores de minha confiança;
dessas rugas na testa inquisidora
das verdades do afeto que devoto...
Já me calo no tom do teu silêncio,
me resfrio no freezer dos teus traços
e nos braços cruzados do teu ser...
Tua guarda montada em cada gesto,
cada linha indigesta sobre o rosto
têm um gosto que chega de sentir...

PREGUIÇA IDEOLÓGICA

Demétrio Sena, Magé - RJ.

Será fácil gostar da criança nutrida;
da menina sabida, o garoto asseado;
quem aprenda sem voz, na verdade sem vez, 
não precise de alguém que desate seus nós...
É bem cômodo ater-se ao aluno padrão, 
educar quem no fundo já chega educado,
dar amor ao amado, socorrer o salvo,
ser a mãe, ser o pai dos que os têm a contento...
Não se tem desafio no quase perfeito;
em achar meio feito pra meio fazer;
qualquer um tem prazer, no prazer, propriamente...
Todos querem ser mestres da turma dotada, 
todos querem ser médicos de gente sā, 
todos querem trabalho que não dê trabalho...

quinta-feira, 16 de agosto de 2018

SOCIEDADE RESTANTE


Demétrio Sena, Magé – RJ.

A sociedade que nos resta suporta o negro. Mas ele precisa parecer branco; vestir-se como branco; ter costumes de sociedade branca. Também aceita o gay, desde que o mesmo pareça hétero; tenha traços, indumentária, voz e trejeitos héteros. Conserve um comportamento enrustido. Ainda tolera o adepto de religião afrodescendente, com a condição de que ele pareça católico; evangélico; no máximo, kardecista. Viva de modo a não parecer o que denominam, preconceituosamente, como macumbeiro.
Ela convive bem com o pobre, com uma condição: que ele seja um fiel servidor, mão-de-obra barata... ou pareça rico. Pelo menos para si mesmo... que se auto engane, crendo que lhe dão valor pelo servilismo, ou creia enganar a própria sociedade que, na hora certa, fará bom proveito dessa ilusão. De resto, a sociedade restante ama a mulher... no entanto, é necessário que a mulher se ponha no “seu lugar”; não faça frente ao homem. Obedeça ao domínio machista e, pode até trabalhar. Só não pode ocupar os mesmos espaços do homem, pelo menos com a mesma valorização profissional.
Esta é a sociedade que nos resta. Uma sociedade que vive e exige que todos vivam de aparências. Exclui e ao mesmo tempo “perdoa” os excluídos, desde que os próprios excluídos não se perdoem. Aceita os que não se aceitam, os que se negam e se rendem aos seus padrões, porque isso é vantajoso para ela. Da imagem eternamente imposta aos negros, gays, religiosos marginalizados, mulheres e pobres, a sociedade que nos resta faz a própria imagem para se manter como é, porque essa é a fórmula exata da concentração de tudo o que lhe interessa para continuar impondo seus cabrestos.
O sonho da sociedade restante não é outro senão o de perpetuar o poder sobre as classes dominadas e fazer com que seus dominados se orgulhem de ser conduzidos, ao pé-da-letra, como dóceis ovelhas. A propósito, nestes tempos em que a igualdade social já deveria ser fato consolidado, a figura de linguagem perfeita para os dominadores, vendida com mais sucesso do que nunca, para os dominados menos atentos, é exatamente o mais estúpido, passivo e subserviente dos gados: a ovelha.

quarta-feira, 15 de agosto de 2018

SONETO FORÇADO


Demétrio Sena, Magé – RJ.

Hoje sinto a poesia engarrafada
entre as vias ou veias em conflito;
quanto mais a procuro, chamo e grito
mais a perco no abismo do meu nada...

Choro a seco, meu brado soa mudo;
sai dos olhos e some pela estrada;
gasto verbos na folha rabiscada,
mas não digo a que vim depois de tudo...

De repente a poesia vem à marra
feito bicho acuado que se solta;
filho dócil que um dia se desgarra...

Foi um feto inspirado, porém torto,
que rompeu as amarras da revolta
e nasceu apesar de quase morto...

DESEJO INCONTIDO


Demétrio Sena, Magé – RJ.

De repente o desejo pinta o sete;
vai sedento, se joga, perde o chão,
nossa índole foge, não se mete
nos assuntos extremos da paixão...

O desejo é mais forte que oração;
a nudez rompe a lona do colete;
quando a carne supera o coração,
já não teme chicote nem cacete...

Não existe pecado sobre amor,
mas na velha cegueira do clamor
cujo fogo é arroubo de momento...

Minha gula domina o dom da fome;
sou a  fera que ataca, mata e come;
meu desejo devora o sentimento...

SOBRE O NÃO SOBREMORRER


Demétrio Sena, Magé – RJ.

Descobri que não tenho temor da morte. Meu medo é de não viver, apesar de vivo... ou de não morrer simplesmente por já estar morto.
Que o destino me livre de ser não sendo. Ir não indo. Estacionar no cais do nada; no porto inseguro do comodismo existencial. Da satisfação de crer que basta esperar o que já chegou e passou pelo meu fim. Chegar ao fim do fim e não conseguir fechar a conta.
Morrerei, certamente. Mas quero morrer vivendo; não morrer já estando (in)devida e veladamente morto.

segunda-feira, 6 de agosto de 2018

BOBO ESTRATÉGICO


Demétrio Sena, Magé - RJ.

Terei sempre um silêncio expressivo e sonoro
para quando atirares palavras em vão, 
calarei tudo em coro com minhas verdades
ante a tua ilusão de me faltar a voz...
Quero ser o teu bobo estratégico e pronto 
a deixar que te fartes das próprias piadas,
de bravatas ao vento e dos falsos prodígios 
em tiradas às quais não darei atenção...
Perderás o teu tempo entre sons e trejeitos,
ironias inférteis ou feitos banais, 
ilusões perecíveis de ferir meu brio...
Tecerei teu castelo firmado em teu ego,
encherei dos teus eus até furar a bolha 
em um prego escondido na vida real...

PERDÃO


Demétrio Sena, Magé - RJ.

Raivoso e no auge de uma discussão, chamei o indivíduo de cão sarnento. Gritei, mesmo, em alto e inequívoco som: “Seu cão sarnento! Seu cão sarnento!”. Ele se assustou com a minha ira e se foi. Achou melhor não continuar ali, destilando aquela ironia que me deixara transfigurado. Adivinhou meu próximo passo, que seria fazer com ele o que meninos malvados fazem com os cães sarnentos que proliferam nos subúrbios.
Mas devo confessar que, passado aquele momento refleti. Comecei a sentir um remorso imenso do que fizera. Da ofensa impensada e descabida que tanta gente nem acreditou ouvir da boca de uma pessoa que sempre tenta ser tão serena, reflexiva, social e até ecologicamente correta. Cheguei à conclusão de que fora intempestivo, cruel, truculento e desumano em meu xingamento, especialmente pela comparação que fiz.
Não demorei a vencer o brio e fazer o que era certo. Fui pedir perdão. Não tinha ideia de como seria recebido, mas fui lá. Vesti a coragem de ser humilde, assumi o risco de ser humilhado, abri meu coração e parti para o desafio às cegas. Um desafio que terminaria espantosamente bem, porque fui recebido como se nada houvera. Como se eu nunca tivesse gritado aquelas ofensas que ainda ecoavam em minha mente.
Meu alívio foi total. Tirei das costas um peso que não podia levar por longo tempo. Minha consciência me condenava duramente. Eu mesmo já me punia. Não conseguia me perdoar pelo comportamento insano. Fui surpreendido com uma lição de humildade, ao ser acolhido com afeto. Não precisei me humilhar para ser perdoado. A comunidade canina, muito melhor do que o ser humano, já me perdoara no ato da ofensa.