quinta-feira, 27 de setembro de 2012

CÉU DE LUXO


Dia destes ouvi um hino evangélico esquecido, havia tempo, no sótão de minhas nostalgias. Um hino que assombrou minha infância pela mesma razão por qual deixava em êxtase os adultos de minha parentalha, todos evangélicos. A mensagem, que se refere ao céu como a futura moradia dos salvos – hipoteticamente os irmãos na fé – descreve uma cidade onde tudo reluz: As mansões luxuosas são de ouro; os muros de puro jaspe; as ruas de cristal. Nenhuma florinha; um gramado; arbusto; árvore; pássaro; borboleta; um calango. Nada.
Sempre me assustei com essa ambição desmedida, pretensamente espiritual, mas que de espiritual mesmo, não tem nada. Nos meus temores, fugia do céu parecido com os reinos particulares dos maiores tiranos de todos os tempos. Reinos de luxo e luxúria, onde os bens materiais são a tônica da felicidade. Onde a natureza não tem vez e nenhuma árvore é tolerada, porque pode significar o emperramento do progresso. A ideia de simplicidade, modéstia e desprendimento. No céu dos evangélicos, ou dos cristãos, ainda que se contorne o contexto e se apresente a justificativa da figura de linguagem ou de uma didática para converter os mais pobres, os que nada ou quase nada possuem aqui, tudo é material. Tudo inspira soberba. Tudo é antiecológico; até mesmo antideus. 
Mesmo no tempo em que acreditava num criador, e consequentemente nos endereços místicos (ou míticos) propagados pelo homem como ícones de premiação e castigo, jamais ambicionei o céu. Não esse que me punham nos olhos, visando pescar meu espírito pela promessa de uma “virada de mesa”, uma “volta por cima”, quando chegasse lá. Era menino muito pobre, quase nem tinha o  que vestir e comer, mas nunca sonhei com mansões no espaço nem na terra. Nunca tive o desejo de usar sequer um broche de ouro. Uma gargantilha de prata. Um relógio folheado. Ainda hoje, quando já posso ter consideráveis bens de consumo, tenho estritamente aqueles de que preciso. 
Quero voltar a esquecer o hino. Ele sempre me assombrará, pela simples lembrança do mal que já me causou. Ainda sou, neste contexto, aquele garoto que quando trepava em árvores, tomava banhos em rios, brincava com um vira-lata, via borboletas, pássaros e bois, pensava para si próprio, bem secretamente, para não ser castigado pelo Deus-Nero a quem não amava; só temia: “Puxa vida... Não quero ir pro inferno... Mas bem que o céu podia ser assim”.

NOSSO QUASE AMOR


O que fomos não foi; passou por nós;
Foram nós desatados que não foram;
Que não demos em nós, depois não deram
No que tinha que ser, mas não devia...
Foi um caso de ocaso sem aurora;
Já nasceu vespertino; sol distante,
Na bocarra noturna do infinito;
Virou mito e se foi dos nossos mundos...
Mesmo assim abriu sulcos, deu em n
Nossa mágoa contida e carinhosa...nódoa,
É um nó na madeira dos sentidos,
Porque fomos retorno da não vinda;
Um ainda que nunca virou já;
Queda livre do voo que não houve...  

NOVA PROCURA


Saberei aguardar, mas não por ti;
Vejo mais a viver do que a esperança
Dos teus restos depois de tanta estrada;
Tua estada em meu mundo lá no fim...
Resolvi que meus pés também têm chão;
Que o amor pode ser passado à frente,
A paixão se renova em outras peles,
Outras lentes que deixem ver além...
Doravante arquiteto meu destino,
Traçarei outros rumos, outros cais
Onde possa encontrar o próprio eu...
Se doeu de morrer, já tive cura;
Tenho mais a doar pra quem me quer;
Minha nova procura me está no ponto...

QUEBRA DE ROTINA

Quebre a rotina, de vez em quando: Fique um pouco em sua casa.

BUSCA INSANA DA SANIDADE


O todo veio do espaço, e nem o espaço existia. Mas ele veio assim mesmo: Da infinita  inexistência, do nada ou da massa cinza que as massas pretensamente cefálicas tiraram de onde não sei. Talvez da própria loucura. 
Quem sabe não veio mesmo de um Deus que não nasceu nem surgiu? Um ser que tinha espírito errante, não tinha corpo pro espírito, pairava sobre um abismo e nem abismo existia...  Ou sobre as águas que desafiavam esse tal nada, essa inexistência, existindo sem existir, na fila de todas as coisas que seriam criadas. Alguém sem começo, meio e fim, sobre quem não há meio de saber, muito embora tantos pensem ter a fórmula, fôrma ou forma desse alguém.
Unamos Deus e a ciência: O todo veio de fato dessa massa cinzenta que nadava no nada  quando não havia massa nem cor,  mas um dia explodiu na inexistência do espaço. Deus fez a massa cinzenta e a nossa massa cefálica para não saber de nada.

A MÁXIMA DO ERALDO


O Eraldo era poeta. Só podia ser. Ou não teria encontrado a sublimidade com que arrancou do seu âmago, talvez do seu inconsciente, a beleza mágica do que me disse naquele dia. Uma frase curta, mas de grande sentido, que armazeno carinhosamente na coletânea íntima das máximas inesquecíveis que ouvi até hoje..
Já faz tempo considerável, trabalhávamos juntos; na mesma empresa. Um dia, quando saímos bem mais cedo, resolvemos caminhar na praia, que não era distante. Nos nossos poucos minutos de conversa informal, não houve como deixar de perceber o romantismo do meu colega: Ela fazia pequenas pausas, lançava os olhos no azul do firmamento, catava conchas e atirava pedrinhas ao oceano, para vê-las quicando no espelho das águas calmas e cristalinas de Maricá. 
Em dado momento Eraldo para. Seus olhos parecem viajar para mais longe... Vai pescar uma inspiração que já é sua, mas parece guardada no infinito... Numa onda longínqua... Quiçá nas correntes brandas da brisa vespertina que acaricia especialmente os seus cabelos. Logo surge um brilho mais forte na sua expressão suspensa; extasiada. Então ele suspira fundo, como que por prelúdio, e fala como quem sopra suavemente a mais doce das melodias:
- Puta que pariu... A natureza é linda pra cacete.

MÁGOA


Teu alívio marcado e pontual;
tua pausa, teu pouso, teu recreio;
sou apenas recheio da estação
que te cansa e precisas de recesso...
Se tu´alma está plena, o corpo leve,
nenhum fardo na mente ou nos afetos,
não há vetos, conflitos nem pesares,
tenho queda na tua cotação...
Sempre fui a tipoia do teu ser,
quando sofres fratura emocional
e precisas verter a tua mágoa...
Sou antena que acessa teus canais
pra que fujas comigo e depois fujas,
onde mais me consolo em teu consolo...

DESEJO OCULTO


Os meus olhos procuram sua flor,
Serpenteiam na relva delicada,
Pairam sempre onde o zíper me censura;
Onde a estrada se fecha para mim...
É daí que retorno e vou aos montes
Que resvalam da blusa generosa;
Quase posso explorá-los por completo,
Mas lá vem a censura de um botão...
Meu desejo é o desfile desses quases,
Sua imagem me lambe o tempo inteiro
E me deixa hidratado pra sonhar...
Tenho feito meus pousos em seus olhos,
Para ver se o restante se desnuda;
Só nem ouso esperar pela resposta...

ESPERANDO O TEU AMOR


Teu recreio te aguarda, vem brincar
De gostar do meu mundo, minha casa,
Minha NASA modesta e suas naves
Que nos levam por sonhos infinitos...
Vem de novo montar teu faz-de-conta
Na moldura ideal de alguns momentos,
Nestes ventos macios do recanto
Que descansa o teu corpo; tua mente...
Faz de conta que anseias vir mais vezes,
Mas “quem dera”, não podes fazer nada,
Tua fada não tem esse condão!
Tudo bem, não te cobro, só te aguardo
Para ser teu recheio pontual;
Teu luau; tuas horas de recreio...

O DIA SEGUINTE

Tomar posse do poder faz tudo o que seria facilmente realizável virar milagres que não podem ser operados do dia para a noite, assim como transforma o “do dia para noite” numa eternidade.

ODORES DE OUTUBRO


Aromas na brisa
Definem bem a estação...
Tardinhas de outubro.

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

MÃE


Ela um dia foi colher
seu legado; sua estrela;
toda bem-aventurança
do que plantou nesta vida...
Só podemos lhe dizer,
quando a dor de já não tê-la
virou suave lembrança:
"Nossa mãe; seja bem-ida...".

OUTONINO


Vento em espiral.
Uma guirlanda de folhas
girando no chão.

COBRA


Um bote certeiro.
O rato agora é uma hérnia
No meio da cobra.

IVONE: PROFESSORA DE VIVER


Com meio século de vida, creio precisar de pelo menos mais meio século para que a lembrança daquelas tardes de poesias promovidas no sexto distrito de Magé, pela professora Ivone Boechat sejam levemente assentadas nas minhas nostalgias. Eu ainda menino, não morador de rua, mas das ruas, procurava saber de todos os festivais de poesias que superlotavam os clubes locais da época, parta participar. A professore Ivone, ainda jovem, era diretora do Colégio Cenecista Visconde de Mauá, em Piabetá, e tinha verdadeira paixão por aqueles movimentos. Como se não bastasse, também era uma educadora capaz de ouvir os anseios de cada criança, adolescente ou jovem que a procurava individualmente para mostrar seu talento real ou até mesmo pretenso.
Fui um desses meninos inquietos que não a deixavam em paz. Não estudava no “Visconde”, mas estava sempre lá, na sua sala, sem sofrer nenhuma discriminação pela minha roupa surrada, meus cabelos enormes e armados como arame, a mochila indefectível cheia de ninguém sabia o quê e a fama de maconheiro. Ela me recebia com um carinho inacreditável. Dava dicas, informava sobre os eventos, não fazia perguntas pessoais e não tinha medo de me tocar: Tirava sempre da expressão serena e séria um abraço disfarçado; um afago meio materno; um olhar nos olhos de forma respeitosa, como se eu fosse um daqueles meninos bem nascidos que estudavam no colégio dirigido por sua competência e seu amor ao ofício que não era só um ofício. Era estilo e filosofia de vida, como tenho certeza de que ainda é.
Hoje, a professora Ivone Boechat é pessoa de grande vulto no meio educativo nacional. Também realiza palestras e conferências. Faz pouco tempo, estive na plateia de uma palestra sua, em Raiz da Serra. Ela falava de atenção ao aluno. Igualdade de tratamento. Amor pela educação. Compromisso além da obrigação remunerada. Pude perceber entre os presentes algumas narinas retorcidas: Eram claramente professores amargos e mal resolvidos, como que demonstrando enfado pelo tema supostamente óbvio... Nada de óbvio, se considerarmos que os educadores de nossos dias continuam precisados dessas exortações; desses guinchos de autoestima; dessas palavras valiosas de conscientização que sempre foram olvidadas logo depois  de ouvidas.
Pois essa palestra que ouvi da professora Ivone me tocou tanto quanto as palavras de afeto, incentivo e crença no meu futuro, que a mesma voz me disse na sala de direção do “Visconde”. Quem assiste a uma palestra da professora Ivone Boechat, tenha certeza de que ela sempre viveu o que prega como educadora. Não são palavras ao vento. Sua vida inteira no meio educativo tem muito mais peso do que qualquer ouvinte ouse supor. Ela nem precisaria dar palestra educativa ou motivacional: Bastaria narrar seus feitos como educadora, descobridora de talentos, incentivadora das artes, da literatura, e amiga dos estudantes que lutam pelo direito de sonhar. Eis o maior discurso, a mais sublime palestra ou conferência da professora Ivone: Sua vida.

VADIO CONFESSO


Um poeta labora vendo as flores
Que se vestem, se despem no jardim;
Canta risos, inventa seus amores;
Dá sentido maior ao não e ao sim...

O poeta que vem dentro de mim
É capaz de adoçar os dissabores,
Impor fim ao início, início ao fim;
Desbotar só pra ter que repor cores...

Acha belo ter fome, sentir sede
Ao abrigo da sombra; numa rede
Onde forja prazeres moribundos...

Seu ofício é uma bela hipocrisia;
Só me cumpre assumir nesta poesia ,
Que poetas são doces vagabundos...

CANSADO DE AMAR


Se vieres depois da nova ida,
finalmente acharás alguém mais sóbrio;
é que a vida ensinou aos meus anseios
que não és um opróbrio relevante...
Pois o mundo está cheio de gemidos
mais intensos, pungentes e profundos,
tem rangidos que zombam das razões
do meu peito, meus olhos e meus dentes...
Caso venhas de novo estejas pronta
para teres ou não teu velho cais;
tua conta, o teu crédito infalível...
Pode ser que por minha sobriedade
não encontres quem sempre te acolheu;
já nem aches meu eu dentro de mim...

CATADOR DE POESIA


Meu poema é o que sobra dos poetas
Que ficaram depois das próprias idas,
É migalha de vidas e vivências;
De palavras não postas nos papéis...
Os poemas que faço vêm do lixo;
São rejeitos das obras imortais;
Bons achados frasais que se perderam
Por descuidos de gênios bem providos...
Revirei os esgotos de Bandeira,
de Cecília, Drummond, Pablo Neruda,
Contraí coliformes de seus dons...
Teço aqueles poemas meio feitos,
Que os eleitos arrotam de seus limbos;
Passo a limpo; talvez psicografe... 

LAMENTO DE SAUDADE


O desejo não tem que ser só meu,
Nem a velha carência que me rói,
Como dói aqui dentro hei de saber
Que acontece com tua solidão...
A distância entre nós é sempre a mesma,
Já não tenho que ser quem novamente
Chora e sente a latência do vazio;
Pede ao tempo a reprise; o recomeço...
Desta vez abrirei o meu portão,
Deixarei o convite aberto ao vento;
Coração arrumado, a vida entregue...
Mas não ponho meus pés fora de mim;
Desta rinha em que luto por viver;
A saudade não tem que ser só minha...

AMOR INCÔMODO


Comecei a sentir que tu não vens,
Pois o tempo escasseia em teu relógio;
Já não tens um minuto pra lançar
Sob a mesa onde aguardo a tua sobra...
Mas também não me cabe ser credor
De quem nunca iludiu minha carência,
Porque não assinaste a promissória
Duma história de amor que só é minha...
Sempre aceito a verdade lá no fim;
Não te assustes, conheço meu lugar;
Fico em mim; deixo a vida prosseguir...
Tens teu mundo, as pessoas adequadas,
As estradas distantes deste canto
Que acomoda meu sonho acomodado...

UM DEDO DE VERSO


Vou ser direto;
bem franco; exposto;
rosto no rosto,
preto no branco,
norte no sul...
Preciso de azul,
vermelho, rosa,
pois minha palavra
procura universo
pra florescer...
Chega de prosa!
Preciso e peço
um dedo de verso
com você.

QUANTO CUSTA SER VITRINE


Quando sofremos críticas pelo insucesso de um ato ou projeto que diz respeito à coletividade, não somos injustiçados. É que mesmo imperfeitos - ou falíveis -, temos como atribuição o acerto, não a falha, quando aquilo que fazemos obrigatoriamente se reflete no próximo. Ninguém contrata, convoca, escolhe ou elege um líder ou profissional para falhar.
A crítica é certa, e o elogio não, porque aquela recai sobre quem deixou de realizar seu propósito. Quem não correspondeu às expectativas que o cercam. Em outras palavras, não cumpriu sua obrigação. Já este, o elogio, nem sempre ou quase nunca ocorre, por uma razão evidente: Quem acerta não faz mais do que simplesmente cumprir seu ofício, promessa, obrigação ou contrato. E ainda que o tenha feito brilhantemente, apenas correspondeu ao que se espera ou exige do ser humano vitrine: Dar o máximo de si; do seu talento; superar a si próprio.
Quem é político, artista, escritor, desportista, repórter, modelo, apresentador de programa ou similar tem que ter estrutura emocional. Aceitar a imensa carga de críticas quando falha ou desagrada, e os elogios escassos (ou nenhum) quando acerta; brilha; dá show.
Ser pessoa pública ou líder é assumir as entrelinhas do contrato, estatuto ou regimento nas quais estão previstos os imprevistos - e até os massacres - inerentes a sua exposição. Sobretudo, é ter consciência de que a crítica é a única atribuição infalível do ser humano em relação ao outro. Uma pena que tão somente em relação ao outro.

POLÍTICA E MILAGRE

Milagre é uma coisa que todo político fará quando está em campanha, mas, depois de eleito, político deixa de ser santo.

MINHA ESPERA


Quando chegas, o mundo se despede;
nada existe senão este recanto
e os momentos que pairam sobre nós;
um encanto que a tudo faz eterno...
És com quem me despojo do meu eu;
tiro as cascas, os rótulos, os panos;
não há planos, engenhos e projetos;
há um sonho sem prazo e compromisso...
Só depois de partires dou por mim,
sinto como foi breve a eternidade
que levaste outra vez não sei pra onde...
Volto ao fundo insondável desta espera;
sei que ainda virás, quando não sei,
pois a lei do meu sonho é não saber...

RADICALISMO VIVENCIAL

Pior do que péssimo, só mais ou menos.

sábado, 22 de setembro de 2012

ESPERANÇA DE UM POVO CANSADO


Há um povo solto nas ruas. Não sei se o conheces, mas esse povo sabe quem és... Ou pelo menos intui que sabe. Trata-se de uma gente que flui da própria esperança já puída entre as velhas preces e os sonhos de algum dia sentir que tem vez e voz.
Esse povo é simplesmente quem paga pelos teus dias de pompa. Foi ele quem te pôs nessa casa onde agora não cabe, pois é nela que te ocultas enquanto brincas de reinar. É nessa casa que o preço do apreço que te aclamou como líder popular já não pode achá-lo, porque sabes fugir dessa responsabilidade.
É preciso que avives tua memória curta! Que só é curta quando assim te te convém! Ela te furta o bom senso, a noção de atributos, pela coragem que tens de receber pelo não trabalho... De recolher tributos para o que deves fazer e não fazes.
Tem um povo esperando que acordes da preguiça, da má vontade, a má fé, para cumprires as promessas que fizeste há pouco tempo, entre acordes melosos... Canções cansativas de campanha. Promessas de uma profunda mudança... Para melhor. 

VIDA PLENA


Cheguei ao ponto em que o ponto
já não exclama, interroga
nem salienta.
Estou em câmera lenta
e meu sorriso, meu pranto
vão ficando à meia-luz.

Cheguei ao ponto em que o ponto
faz ponto cruz.

Porque no fundo me sinto
alguém ou algo já pronto
pra dar partida.
Pois tive tudo que a vida
pudesse dar de mais vário,
agora o tempo me gasta.

Cheguei ao ponto em que o ponto
é ponto e basta.

FILHOS DA MÃE


Voltei a sonhar com minha mãe... Um sonho comum, sem arroubo nem mistério; sem tristeza nem risos fartos. Nem sei de verdade o que minha mãe fazia naquele sonho. Ela simplesmente estava. Docemente estava. E a paz daquele momento consistia nisso: Ela estava comigo.
Tenho certeza de que o meu sonho - não realizável - não é só meu. Também é dos meus irmãos, todos tentando superar a saudade; a falta que nossa mãe faz em nossas vidas. Uma falta irreparável, que até aceita paliativos, mas cuja dor não cessa, por mais que o tempo se ostente como solução para tudo.
Queríamos nossa mãe... Sabemos que não é possível, mas queríamos a bênção de revê-la. Tê-la conosco sem arroubo nem mistério, com todos os risos e tristezas da vida, mas ao abrigo dessa paz: A sua presença... Simplesmente sua presença... Docemente sua presença entre nós.

LÁGRIMA


Só mesmo quem chora
descobre que a lágrima
é mais do que choro...
A lágrima é soro -
lava, enxuga, enxágua...
... olho sujo de mágoa.

AMOR BALDIO


Há um tempo em que temos que aprender
Que doarmos demais desvaloriza;
Precisamos vender nossos valores
Pelo troco do quanto já se foi...
Quem nos teve até hoje, apenas teve,
Nunca teve que ter para nos dar,
Certamente nos tem no arquivo morto
De algum porto esquecido em seus afetos...
De repente me quero, me reclamo,
Já não quero  servir como sucata
Pra quem amo e nem sei por que razão...
Nunca mais deixarei minha carência
Ser um velho terreno abandonado
Que não deixas de lado nem ocupas...

TESTICULANDO


MENINA E VACINA

Há um pranto precoce,
a tosse falsa e nervosa
nos modos dessa menina...
É que a vacina já dói
porque prometem que não;
porque depois do sermão
ainda será vacina...

APENAS TE AMO

O amor não se rende
a nenhum advérbio
de intensidade...
Eu apenas te amo.
Não é muito nem pouco...
Só de verdade...

POLÍTICOS

Se temem críticas,
prometem paz;
prás feridas
têm todos os drenos...
Promessas políticas:
Compridas demais;
cumpridas de menos...

AMOR À V IDA


Sou de achar os oásis ocultos nos ermos,
descobrir as fagulhas de luz entre as trevas,
tenho sempre saída quando já não há
e parece que morro, mas resgato a lida...
Aprendi a sobrar e renascer do extremo;
para mim remo é barco, depois do naufrágio;
se não domo a tormenta sei domar meu medo
no momento em que tudo parece acabar...
Mas também não me privo de saber que o fim
chegará no seu tempo, na sua estação,
só não quero ajudá-lo a tomar um atalho...
Quero ser imortal até quando puder,
aplicar minha vida em viver seu melhor
e morrer de completo; não de flanco exposto...

VÍCIOS SIAMESES

Ocultar e mentir são atitudes gêmeas.

AMOR E MALDIÇÃO DE MIRINDIBA

Demétrio Sena - Magé


No alto daquele monte
Do Bom Senhor do Bonfim
Há um conto, mas não conte
Sem antes ouvir de mim.

Na verdade o conto é fato,
Apesar da presunção
Dos que dizem ser boato;
Coisa da imaginação.

Ainda um tanto deserto;
Não demais pra quem tem pé,
Esse monte fica perto
Do coração de Magé.

A cidade aqui citada,
Saiba logo por inteiro,
É mais uma da baixada
Do meu Rio de Janeiro.

Mas voltemos nesse ponto,
Sem nenhuma nova emenda,
No qual vim contar um conto
Não bem conto; não bem lenda:

Lá no alto, em tempos findos,
Talvez pré-coloniais,
Habitavam índios lindos
Como dizem não ter mais...

E naquela tribo inteira,
Nem por sonho, por chilique
Tinha índia mais faceira
Que a caçula do cacique!

Mesmo assim, nenhum rumor
Ou indício de amargura...
Todos tinham grande amor
Por quem era só ternura!

Mirindiba tinha o dom
Do sorriso meigo e franco,
Exalava um cheiro bom
De jasmim com cravo branco...

Uma voz de mansidão,
Um olhar de graça e bem,
As virtudes do perdão
E da paz... de muito além!

Mas um dia, era uma vez,
Por caprichos de viagens,
Eis que um jovem português
Parou naquelas paragens.

Por maior capricho ainda,
Quem o viu, fez-se notada
Foi a índia pura e linda;
Meio anjo e meio fada.

Ela, encanto. Luz. Magia.
Ele a imagem da imponência;
Da elegância; simpatia.
Ousadia com prudência.

Um olhar... Primeira vista;
Pés perdendo-se do chão,
E nenhum dos dois despista
Os arroubos da paixão...

Incontido abraço forte,
Beijo ardente, de fogueira,
Como se a sugar sorte
Pra torná-la prisioneira!

... Entretanto, como a vida
Conspira e pede recibo,
Mirindiba é prometida
De um belo índio da tribo...

E como se fosse pouco,
Por tantos outros motivos
Combinou-se um plano louco
De mais encontros furtivos...

Fugiriam quando a hora
Fosse própria para os dois,
pois o moço iria embora
Bem pouco tempo depois.

Deveriam tê-lo feito
Bem depressa... precavidos...
Segredo é rio de leito
Na direção dos ouvidos.

Ninguém sabe de qual fenda,
Qual cipó, riacho, poça
Quem viu algo e fez contenda
Com o pai da índia moça!...

De repente a preferida,
Detentora de atenções
Não achava mais guarida
Em nenhum dos corações!

A tribo inteira ciente
Do romance proibido,
Nem queria pela frente
O rosto antes querido...

Quando ao pai, sofrendo e triste,
Com vergonha e frustração,
Diz à filha; dedo em riste,
A seguinte maldição:

Se voltasse a procurar
Seu amado português,
Morreria no lugar
Dessa derradeira vez...

Explicou que o índio moço,
Seu esposo antecipado
Tinha o peito em alvoroço,
Mas ainda apaixonado...

Mirindiba, lábio mudo,
Sem revolta nem prazer,
Com respeito ouvia tudo;
Bem sabia o que fazer...

Preparou-se a tarde inteira;
Solitária, triste, fria,
Prá partida sorrateira
Na madrugada vazia...

Seu pai caíra num sono
De segurança rochosa,
Por duvidar do abandono
Da caçula preciosa...

Porém tudo estava pronto.
O casal traçou a sina;
Partiria lá do ponto
Mais deserto da colina...

... A índia chega mais cedo
Do que o senhor do seu mundo;
Mais cansaço do que medo
Resulta um sono profundo...

... O moço chega mais tarde...
Ao ver que a moça descansa
Pisa leve; sem alarde...
Parecem passos de dança.

Entretanto é coisa urgente.
Não pode haver mais demora.
Ele a chama docemente,
Porque logo surge aurora...

Mirindiba não desperta.
Fica tenso, o português...
Em estado então de alerta,
Chama outra e outra vez...

Desespero! Angústia! Dor!
Chora, grita, geme a vulso
E confere com pavor
A respiração e o pulso...

Era o fim do mal começo;
Ingênua e triste ambição:
Não pagar um alto preço
Pelo amor de maldição...

Mas até depois da morte,
O mais puro sentimento
Vence as garras da má sorte;
Não aceita impedimento:

Corre o tempo, é quase dia,
Nem percebe o moço agora,
Uma chuva intensa e fria
Cai do céu como quem chora...

Eis que a chuva, docemente,
Naquela espécie de altar,
Transforma o corpo em semente
Já começando a brotar...

Raízes descem ao chão...
Irrompe um tronco, a folhagem
Reveste os galhos... versão
Da mais incrível miragem:

Rapidez de raio ou jato!
Mirindiba, deslumbrante,
Reina sobre a selva! O mato!
Sobre seu amado amante!

Ela o suga: Corpo. Alma.
Ele cede... quer assim.
Vai feliz, com doce calma,
Pra viver amor sem fim...

... Na manhã do dia novo,
Uma árvore formosa
Vira símbolo de um povo
Que a cultua em verso e prosa...

Sua espécie indefinida
Entre a flora do lugar
É a saga de uma vida
Castigada por amar.

Essa história rompe os véus
Das distantes, longas datas,
Porque sempre teve os céus
Como testemunhas natas...

Lavro, atesto e lhe dou fé.
Não duvide; creia em mim!
Mirindiba é de Magé...
É do morro do Bonfim.

VERDADE MERCADOLÓGICA


Há na sociedade moderna uma demanda inestimável de talentos que se acotovelam em busca de uma chance. Quem quer de fato essa chance, tem que se renovar como profissional, sob pena de virar estátua. E não adianta ninguém – executivo nem artista; escritor nem atleta; médico, professor nem pedreiro – achar que sabe o suficiente para se dar ao luxo de viver dos resultados de sua estagnação, a menos que os resultados advenham de aposentadoria.
Todo profissional que se leve a sério precisa progredir como tal. Isto não sendo mais possível, quiçá viável, será bem-vinda uma troca de função (dentro da mesma área, para não machucar o orgulho vocacional nem gerar insatisfação, com vistas à infelicidade). Só poderemos nos manter no meio, se tivermos consciência de que o mercado até reconhece o que fomos, às vezes homenageia, mas invariavelmente nos contrata pelo que somos.

IRMÃO PRÓDIGO


Rever meus irmãos.
Reatar o cordão
dos nossos umbigos.
Rever meus amigos
de vida e sangue.
Tão amigos,
tão irmãos, 
que até meus nãos
têm sempre o sim
do amor que nunca
esteve aquém...
Longe de mim. 

HAIKAIS E HAIQUASE


I
A lua,desnuda,
largou as nuvens lá longe...
Despiu-se pra mim.

II
Montanhas azuis.
Metamorfose do verde,
que a distância induz.

III
És quase um haikai
que cai da boca do céu.
Meu olhar te apara.

IV
Riacho de luz
perfura nuvens espessas...
Finda o temporal.

BRUTALIDADE NÃO É FRANQUEZA


À franqueza destrambelhada, que julga e condena sem o menor jeito - e por isso fere a tudo e todos -, prefiro aquela falsidade criteriosa, desgrudada e sutil.
É que o franco destrambelhado não tem ética; noção de hora, contexto e lugar. Além do mais, é franco apenas com os outros. Consigo próprio é falso, ao fazer apologia de sua maior virtude, a franqueza - que no fundo é seu maior defeito - e se orgulhar dos constrangimentos que gera em derredor.
Quanto ao falso criterioso, este pelo menos age de modo a não melindrar o próximo. Só o distante, que não tem como ser melindrado, justo por estar distante. Ter critério não lhe permite ser inconveniente, além de forçá-lo a ser bem educado; cuidadoso com gestos e palavras; discreto com tudo e todos sobre o que sente por esta ou aquela pessoa, pois sabe das saias justas que poderia sofrer por causa das línguas-de-trapo que o rodeiam, inclusive as dos francos destrambelhados, invariavelmente a postos e atentos.
Ao contrário do franco em questão, o falso criterioso - profundo conhecedor da própria falsidade - só é falso com os outros. Consigo mesmo é franco, pois reconhece que não saberia ser claro, direto e contundente sem se tornar um franco destrambelhado... Seu antônimo natural.
Em outras palavras, qualquer extremo é inconveniente; muitas vezes perigoso. Se acho que a falsidade sempre será uma praga, também não me deixo iludir por por aqueles que vivem armados de grosseria, intransigência e suas velhas certezas fora de validade, há muito mofadas, em nome da franqueza.
Eis a minha franqueza. Talvez, para muitos, com ares de falsidade, porque não a imponho. É que se trata de uma franqueza que tenta ser criteriosa e sutil.

PERTO DO FIM


Resolvi que meu tempo é um artigo de luxo
e não posso lançá-lo em apostas fugazes;
que meus ases pertencem ao maço de sonhos
de minh´alma já gasta; marcada; ciente...
Finalmente aprendi que o que tenho a perder
é o que tenho a ganhar, não existe saída,
minha vida chegou ao momento marcado
pra sorver cada gota como a derradeira...
Inauguro sem fuga o começo do fim,
quando volto pra mim da ilusão de que fui
tão além da verdade que agora me toca...
De repente sou eu, nada esconde meu rosto,
monto posto em meu corpo e confesso ao espelho
este velho pavor de nunca ter vivido...

EDUCAÇÃO

Por uma questão de ordem, cronologia e reflexo educativo, nosso respeito pelos nossos filhos tem que se antecipar ao respeito que exigimos deles.

ADEUS


Meu adeus foi de fato; não sonhe com volta;
Nem as voltas do mundo, as viradas do tempo
Saberão costurar esse pano rasgado;
Emendar o passado ao presente ou futuro...
Aproveite a saudade pra rasgar meus versos,
Detestar as canções que adorou ao meu lado,
Nunca mais ver os filmes que via comigo;
Extinguir meus costumes na sua rotina...
Dê adeus às lembranças, pois a nostalgia
Não a deixa ser plena para o novo amor
Que alcançou sua vida; falta o coração...
Até mesmo a paixão do seu ódio fingido
Se confessa e se flagra no soco imprudente
Com que afunda essa faca já cravada em ti...  

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

O MENINO QUE CHAMAVA O VENTO


Pelo menos até os meus doze anos de idade, acreditei que tinha o poder de chamar o vento, ao cantar. Hoje, além de saber que só era coisa de criança fantasiosa, sei que sou uma temeridade quando canto, apesar da voz microfônica e grave que me permite uma boa locução. 
Naqueles tempos, meu avô tinha uma grande plantação de mandioca na mesma localidade rural em que hoje moro, depois de pelo menos quarenta anos. Lá pelas dezesseis ou dezessete horas de todos os dias, eu sempre me aproveitava da distração dos irmãos e colegas e corria para o mandiocal. Chegando lá, ficava esperando até que todas as folhas estivessem completamente paradas. Depois tirava minha roupa, toda a roupa, e desandava a cantar com suavidade pretensa. Nos dias em que o vento não vinha logo, ficava horas cantando. Jamais ia embora sem ter conseguido impor à natureza o meu poder secreto. Ninguém sabia, porque não me interessava exibi-lo, e tinha o detalhe da nudez, que me renderia umas boas gozações.
Depois de cumprido meu ritual, voltava a ser um menino quase comum e procurava pelos demais, para nossas brincadeiras. Meus grandes momentos eram aqueles em que os moleques mais garbosos contavam grandes vantagens envolvendo brigas com meninos maiores e namoros com belas meninas. Silencioso, eu olhava nos olhos dos falastrões, e com expressão bastante calma dizia para mim mesmo: "Grande coisa... Queria ver o que pensariam se soubessem do meu poder de chamar o vento". Aliás, o meu poder me salvava dos complexos que tive por ser tímido, me julgar feioso, não saber brigar nem jogar bola. Foi o meu grande consolo; meu orgulho só meu; minha vaidade humilde.
Neste momento etário, em que reconheço que não posso chamar o vento, só restou a mania de ficar nu, quando estou absolutamente só. Não no mandiocal, mas no espaço de minha casa. Mania nostálgica, que restou da fantasia de um menino que não foi alegre nem triste...
... "Foi poeta".

PAI E FILHO

O pai não pode ser o melhor amigo do filho. Tem que ser o melhor pai que puder, para não perder de vista suas atribuições: Educar, dar amor, disciplinar e prover. 

AUTOCRÍTICA


Nunca fui de renegar
o meu ponto num contexto,
minha vírgula num texto
que requer discernimento...
Sei saber o quanto sei,
sem a lei equivocada
de arbitrar que não sei nada;
muito menos que sei tudo...

POESIA E POETA


Sempre fujo da ironia
que a tantos outros afeta:
Mulheres amam poesia...
mas não suportam poeta.

EDUCAR

Como só se educa se fazendo imitar, saibamos de uma vez por todas, que o ato simples de ser tem muito mais eficácia do que a canseira do ensinar com palavras.

APOLOGIA DO AZUL


É a distância que azula o céu, as montanhas e ganha espelho no mar. Também azula o paneta em que vivemos, quando visto ao longe.
A distância é bela exatamente por ser distância. Por não estar ao alcance de nossas mãos. Ela sempre há de azular o sonho; a saudade; a poesia; o futuro desejado; a esperança mais dispersa.
Agora já sei por que nos depreciamos tanto. Por que nosso amor é tão agressivo e saturado na presença, mas ganha doçura e nostalgia quando estamos ausentes. Por isso a volta constante. A reconciliação.
O azul dá suporte à ilusão; à fantasia. É a cor da beleza, mesmo do que não é belo. É a natureza do abstrato; a roupa do que não é corpo.

AMOR MALDITO


És presépio de mágoas na minha capela;
Um cenário guardado no tempo já posto;
A tevê congelada no fim da novela,
Quando quem matou quem revelaria o Rosto...

Já passou a saudade, já criaste mosto,
Mas no fundo; bem fundo, vejo luz de vela;
Se morreste pra mim, viraste meu encosto;
A migalha do ebó que não sai da tigela...

Na verdade nem sei se te cuspi de fato,
Expeli teu sabor e te guardei no olfato,
Sepultei meu afeto e não lacrei a tumba...

Se te amei com tal fúria, com tal fogo e tanto,
Talvez fosse preciso que um bom pai de santo
Me prestasse o favor de uma boa macumba...

LAPSO DE AMOR


Vem me dar esse beijo que se azeita
Nesse jeito sem jeito em minha frente,
No cenário montado em tua mente,
Respeitoso e contrito como seita...

Faz teu corpo mostrar o quanto sente,
Feito assim nem precisa de receita;
Vem aqui, senta um pouco e depois deita,
Pra que a velha mornura fique ardente...

Não te peço nem quero eternidade
ou que o laço entre nós troque de nome;
nosso amor é o excesso de amizade...

Seja tudo sem nota promissória,
Depois disso é melhor que se retome
A leveza ideal de nossa história...

AMOR PLURILATERAL


Vem amar na janela, vendo a calmaria,
ou amemos no mar; no rumor da maré;
deixe todas as coisas que não têm valia
se nos temos por vício, por dom e por fé...

Tanto faz que deitados, de quatro e de pé,
debruçados no vaso, no tanque ou na pia,
tendo às costas o muro; a parede; o tripé;
na varanda e no piso da sala vazia...

Dá pra ser matutino, de pátio e de grama;
vespertino e noturno; de alcova e de cama;
valem campos, montanhas, tapetes, molambos...

Pode ser periférico, sondagem calma,
o desejo no corpo, a gozada na alma
ou em ambos os lados dos lados de ambos...

CAMUFLAGEM SOCIAL


Não é de hoje que os ricos insuflam nos mais pobres, nos excluídos, o pretenso orgulho dessa condição. Usam sempre a seu favor o otimismo dos que nada têm, a solidariedade corrente nos becos, nas favelas  e no campo; o sorriso farto dos desdentados e a resignação dos que morrem à míngua. Ricos e poderosos não querem concorrência. Se os pobres enriquecem, se o povo ganha dignidade com o acesso irrestrito à educação e à cultura, fica muito mais difícil conquistar fama, poder e riqueza em cima de alguém. Afinal, quem precisará de cesta básica? Quem fará fila nos centros sociais? Quem será obrigado a pagar  “favores” com votos?
Como a miséria bem explorada é boa para políticos, escritores, dramaturgos, artistas plásticos, grandes empresários, ONGS e muitos líderes religiosos, ela é mantida a todo o custo pelos que se beneficiam de sua existência. Os que vivem do infortúnio social alheio primam por convencer os miseráveis de que a miséria é, de certa forma, uma virtude. Incutem nas cabeças confusas pela fome e a desinformação, que os pobres ganham muita coisa de muita gente. Se progredirem, deixam de ganhar. O desejo de crescer e gerir o próprio destino acaba sendo tachado como ingratidão do pobre.
São realmente bonitos os poemas e as crônicas que mostram como a felicidade, a alegria, a resignação e a fé dos pobres estão lá, fora do alcance dos filhos dos abastados. Entretanto, tenho certeza de que no fundo, os indigentes ou simplesmente muito pobres gostariam de ser infelizes como os bem servidos fingem ser. Eles invejam, e com razão, as enxaquecas, crises existenciais, estafas e tiques nervosos dos hipócritas que os enaltecem. Gostariam também de chorar de barriga cheia, como todos os dias veem faze-lo, pessoas de vida ganha. Tão ganha, que sobra tempo a perder com discursos vazios e vencidos faz tempo.
Duvido muito que os contratantes e conferencistas contratados por departamentos de recursos humanos para melhorar a autoestima dos trabalhadores mais sofridos, injustiçados e mal pagos tenham sincero “olho gordo” na alegria e na bênção indizíveis dos ícones providenciais de suas vãs filosofias: Os miseráveis. Os protagonistas do inferno que certos talentos orais, artísticos, literários, políticos e sociais bem resolvidos insistem em pintar como doce ventura.