quarta-feira, 31 de outubro de 2012

FILHOS DE MARIA


Hoje bem cedo, ao acordar do conforto razoável de minha cama, voltei a um passado que já ia distante. Lembrei de um tempo em que moramos numa granja abandonada. Granja, mesmo. Um criadouro de galinhas que ficava em frente à casa de nossa parentalha. Eram tempos de muita privação para as nove crianças e a mãe extremada que esgotara todos os argumentos contra os conselhos dos parentes que não cessavam de asseverar: “Maria Maria; põe esses meninos no colégio interno!”.  
Agora posso entender o que levava os nossos tios e avós maternos a dar um conselho que certamente soa como perverso, mas no fundo não era: Esses parentes, embora tivessem um bom pedaço de terra onde permitiram que nossa mãe construísse um barraco de barro com teto de sapê, não eram pessoas de boa condição econômica. Mal podiam se manter com dignidade; razão pela qual também passariam por privações, caso ajudassem no provimento de mais dez pessoas. Minha mãe também não queria que ninguém nos provesse; por isso trabalhava todos os dias em casas de madames, e antes de sair de casa fazia salgadinhos para eu e o “Jô” (nós éramos os irmãos mais velhos) vendermos nas duas mineradoras (pedreiras) que funcionavam próximo dali.
Além do mais, a parentalha tinha uma preocupação extra bastante justa: Como éramos crianças muito rebeldes, a ponto de pormos fogo no matagal e nos canaviais do lugarejo rural em que morávamos (e onde voltei a morar faz quatro anos), brigarmos até sangrarmos um ao outro, além de outras práticas que aterrorizavam a todos, a previsão comum era de que seríamos “maus elementos”, quando crescêssemos. Ademais, ninguém podia mesmo querer tomar conta de nove capetas enquanto a mãe estava fora, em busca de sustento. Ela sempre nos aconselhava muito, antes de sair. Pedia que não perturbássemos todo o mundo, que os mais velhos tomassem conta dos menores e os que já estudavam dessem um jeito de ir prá escola distante para estudar, merendar e ver se conseguiam levar alguma sobra para os pequeninos, até que ela chegasse.
Nossa rebeldia era resquício da vida que tínhamos em Brasília, de onde saímos depois de nos separarmos do pai violento e infiel. Apesar do conforto material de que desfrutávamos lá, éramos muito maltratados por ele, à base de xingamentos, murros e pontapés. Um dia, nossa mãe sempre traída, mas resignada, resolveu deixá-lo por causa dos maus tratos cada vez mais graves aos filhos. Conseguiu uma carona para o Rio de Janeiro, onde ficamos uns dias na favela de Jacarezinho e depois partimos para o bairro de Santa Dalila, na cidade de Magé, onde nossa mãe conseguiu o favor da permissão para fazer o barraco em terras que pertenciam aos seus pais e irmãos. O depósito de uma pensão litigiosa minguada e injusta de nosso pai, que tinha boa situação econômica, só viria muitos anos depois. Ele tinha suas influências e fez de tudo para que não tivéssemos direito a nada. Abriu mão, inclusive, de ter propriedades em seu nome, para que não recebêssemos herança, em nome da raiva por nossa mãe ter tomado uma atitude que nos livrou de sofrermos violências físicas e morais ainda piores, quando ficássemos adolescentes.
O resumo de tudo isto é que um dia nossa mãe, com lágrimas nos olhos nos reuniu e disse que teríamos de procurar um rumo, para que não fôssemos separados. Perguntamos para onde, ao que ela nos respondeu: “Para qualquer lugar; debaixo de uma ponte, se for preciso, mas ficaremos juntos”. Dito isto, pareceu que um brilho diferente assumiu seu rosto. Então ela olhou logo à frente, do outro lado da rua, e viu a velha granja abandonada no meio do mato, erguida em forma de palafita. Era coberta por telhas francesas, as paredes eram telas de arame e tinha em bom estado as chocadeiras, que serviam bem como camas. Esteve sempre ali, enquanto nossa mãe vivia sob pressão para desistir de nós, ou pelo menos de alguns de nós, em nome da sobrevivência.
Numa noite bastante fria (fria mesmo, não é romance), depois de fazermos uma faxina corrida na granja e um caminho estreito de barro e pedras entre ela e a rua, fizemos a mudança das tralhas, os caixotes e as panelas velhas, para só no dia seguinte nossa mãe procurar alguém que por acaso respondesse por aquelas terras, não para pedir, mas para informar que tinha invadido o local e aí sim, rogar para que “pelo amor de Deus” não fôssemos expulsos. Doravante, foram quase dois anos de uma história que se espalhou no lugar. A quase lenda de uma mulher e seus nove filhos moradores da granja.
A tristeza, o desespero e a insegurança daqueles dias virou orgulho para nós. Uma lembrança que nos faz lembrar com amor e saudade aquela mãe que foi às últimas consequências para não deixar que nenhum filho ficasse pelo caminho. Ela conseguiu nos criar contra todas as profecias contrárias, e hoje somos pessoas de bem, razoavelmente bem sucedidas, como todos duvidavam.
Posso falar pelos meus irmãos, que nosso orgulho e alegria estão centrados principalmente no fato de que tivemos uma mãe que acreditou em nosso futuro, em nossa mudança de comportamento e na força do amor com que nos educou. Somos felizes, porque ela nos amou, nos defendeu do mundo, viveu para nos amar e nunca desistiu de nós.

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