terça-feira, 19 de junho de 2012

DEUS MORTO


Era noite cerrada e silenciosa na cidade pacata onde Janaína morava. Tudo começou quando a moça mal pegara no sono, depois de ler um texto religioso longo e complexo, que a impressionara muito. Tratava-se de um artigo em que o amor do ser humano pelo possível Deus era questionado em sua sinceridade. 
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De um grande susto seguido por um salto, Janaína corre para fora quando escuta um estrondo ensurdecedor, seguido por uma espécie de terremoto. Com assombro, ela percebe que o seu pequeno quintal se transformara num imenso deserto rochoso todo rachado pelo impacto, e sobre ele, um corpo gigantesco. Parecia humano, mas era gigantesco. Ainda respirava, queria dizer alguma coisa e seu esforço o fazia rugir.
Em poucos minutos uma insondável multidão se formou em redor do gigante. Não eram apenas pessoas dos arredores. Vinham de todos os lados do planeta e falavam todas as línguas. Parecia que aquilo fora preconizado e a humanidade já estava mesmo se encaminhando para lá. Sabia do que se tratava. 
Era Deus, a criatura imensa. O Criador de tudo estava moribundo. Sua boca sangrava; os olhos tremiam. A multidão estava incrédula, desencantada e temerosa com aquela cena inacreditável. Como se não bastasse, Deus começa a diminuir e envelhecer num processo acelerado, até que se torna um velhinho indefeso e confuso. Com tal agravante, a esperança universal de um mundo melhor tem seu fim. Todos ficam atônitos, desamparados e não sabem o que fazer. Janaína, impassível, somente assiste. Sente-se vazia, em desespero, com aquela sensação de abandono que muitas vezes assola qualquer pessoa, mas no seu caso e naquela hora, em proporção infinita. Como ninguém saberia explicar.
O velhinho estende a mão, pedindo ajuda. Ninguém se mexe. A multidão está em choque. Deus nem consegue falar, e pelo visto, logo não emitirá qualquer som. Não esboçará qualquer gesto. Será seu fim, quiçá o fim de tudo. Criador, criação e criaturas, tudo se perderá no abismo, como prova de que os esforços divinos para salvar e preservar a humanidade foram todos em vão. De nada valeram as demonstrações de amor e força; o envio de seu filho Jesus Cristo para morrer numa cruz; os milagres e as maravilhas que se operaram para enternecer e sensibilizar o ser humano a desejar o bem.
Mas cadê o amor do homem pelo Criador? Afinal de contas, havia ou não amor? Será que os louvores, as preces, os sacrifícios, romarias e tudo o mais foram falsos? Se naquele momento inacreditável Deus era um velhinho indefeso e prestes a morrer, não importava, não deveria importar, pois se tratava Dele, a quem todos os seres devem tudo, especialmente a vida! Uma tamanha ingratidão tratar assim o pobre Deus.
Quando põe fim à ponderação e se propõe a dar um basta naquela indiferença, conclamando aquele povo a pelo menos demonstrar sua solidariedade ainda que sem sucesso, Janaína vê o pior: O demônio, com toda a força, pompa e majestade, surge mais gigantesco do que o próprio Deus, quando caiu. Gigantesco, forte, ousado, vivo e com um grande exército. Chega disposto a enfrentar os anjos que porventura desçam à terra para proteger o Criador. Também disposto, é claro, a exterminar quem conteste o seu poder e ouse contrariá-lo; mostrar-se oposto ao reino das trevas por ser estabelecido.
Neste momento, a multidão se bandeia para o demônio. Sequer olha para o Deus velhinho. Ele já não pode fazer nada pelo mundo e seus habitantes, pelo espaço sideral, o reino dos céus nem por si próprio. O poder e a força mudaram de lado. Ninguém adora os vencidos, os desafortunados, por mais que mereçam honra.
Janaína, não. Ela não é assim. Resolve que não vai abandonar o velhinho.  Morrerá com ele, se nem adianta lutar. Deus  é tudo para ela. Mesmo assim debilitado, moribundo, próximo de seu último suspiro. Não adianta lutar, isto é certo, mas a moça quer luta. Pega Deus com um braço, para levantá-lo, e com o outro, apanha pedras no chão; atira contra o inimigo. No exato momento, incontáveis flechas a atravessam. Ela cai de joelhos, abraçada ao Velho Deus. Pouco antes de morrer, sussurra em seu ouvido palavras de gratidão pela vida, o amor, a família que teve, até mesmo os filhos que não poderá mais criar.
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A resposta divina chegou tarde. Janaína já despertava. No horizonte, o sol dava notícias de que o mundo estava salvo... Pelo menos por enquanto. Ela corre para fora, não antes de reler a última frase do artigo em suas mãos: Você de fato ama Deus ou está do lado mais forte? 

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