sexta-feira, 1 de junho de 2012

NASCENTE DE LÁGRIMAS

Há muitos e muitos anos uma nascente fornece água farta e cristalina aos moradores de todo o bairro de Suruí, distrito da cidade quase interiorana de Magé, no Rio de Janeiro. A água brota no pé-do-morro, cai num pequeno reservatório construído e passa por um cano de meia polegada. O cano a transporta para o outro lado da rua de chão batido, para prover baldes, garrafas pet, galões e outros recipientes levados pelo povo.
Velhos sábios remanescentes, que a minha curiosidade conseguiu encontrar num recanto entre os mais ocultos, segredaram que aquela água tem poderes milagrosos, mas seus poderes escolhem a quem beneficiar. Na verdade, não é apenas água. São lágrimas de uma família que habitou a localidade numa época remota, quando não havia outros habitantes no lugar. Tais anciãos, que se dizem os últimos descendentes de um membro dessa família contam que ela era formada por muitos homens e apenas uma mulher. Chamava Luna.
Luna era uma criatura doce; com poderes mágicos que ninguém entendia, pois só ela os tinha. Sempre que os pais e os numerosos irmãos adoeciam, ela inventava um novo ritual, que envolvia danças e banhos com ervas, para curá-los em poucas horas. Não havia entre todos eles nenhum temor, sequer da própria morte, pois sabiam que Luna estava sempre ali, prestes a devolver-lhes saúde, vigor e a continuação de caças, pescas e colheitas fartas; atividades das quais viviam sem luxo, mas não podiam reclamar.
O que ninguém sabia, nem jamais se deteve a pensar, era que a moça não poderia fazer nada por si própria, caso viesse a adoecer. Como isso nunca acontecera, todos se permitiram levar a vida sem essa indagação. Eram felizes, trabalhavam e se divertiam, não tinham vida social, só familiar, mas isso não era problema. Também não era problema o fato de não terem cônjuges, vida sexual, desde que chegaram, já nem sabiam quando, fugindo de algum lugar por uma razão tão grave quanto inexplicada.
Chegou o dia triste. Mais triste e decisivo de suas vidas. Luna adoeceu pela única – e também a última – vez. Adoeceu gravemente, não havendo erva, banho, ritual nem reza que a curasse. A família entrou em desespero, não apenas por saber que seria o fim de todos naquele fim de mundo em que as doenças eram muitas, mas por amar profundamente a moça que sempre cuidara dos seus com tanto zelo, carinho, dedicação e paciência.
Morreu Luna. A família enlutada envolveu seu corpo em pele de onça e a levou para o pé-do-morro, onde a homenagearam com cânticos, antes de sepultá-la. Só o mais velho dos irmãos, ensandecido, fugiu para longe. O resto da família, depois de sepultar o corpo da moça ficou lá, pranteando sua morte. Todos choraram muito, sem cessar, até que morreram de sede, inanição e desgosto, e foram comidos pelos abutres. 
O irmão mais velho de Luna, depois de anos vagando, encontrou uma bela jovem, com quem estreitou laços e acabou se apaixonando, no que foi correspondido. Ramon, era este seu nome, não demorou a ter filhos com Sara. Ambos foram viver exatamente onde o moço vivia com a antiga família, e qual não foi seu encanto ao perceber que havia exatamente onde Luna fora sepultada, uma nascente de água pura, leve e cristalina. O casal bebeu da água, sentiu-se revigorado e rejuvenescido. Emocionado, Ramon passou da impressão à certeza de aquela água era o pranto de seus familiares.
Perguntei aos sábios, descendentes de Ramon, por que motivo Suruí e toda a região em derredor têm tanta gente enferma, se a água da nascente possui poderes de cura; os tais poderes milagrosos. Eles repetiram que a água escolhe a quem beneficiar com seus poderes e explicaram que a cura não é a partir do corpo, e sim, da alma. Pessoas especiais, com sensibilidade muito aflorada sentem esses poderes e interagem com eles. Só a partir daí podem se perceber tanto revigorados quanto rejuvenescidos.
É como acontece com a própria vida: Precisamos ser sensíveis, desarmados e até ingênuos para perceber as grandes venturas que o dia sobre dia nos traz por meio de pequenas coisas e momentos imperceptíveis aos olhos. Não queremos entender, mas a fonte inesgotável da vida reserva grandes felicidades naquilo que não queremos ver... Nem ter. Acho que a cura da humanidade mora do outro lado de nossas procuras, sempre as mais infelizes. 

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