quarta-feira, 16 de maio de 2012

A HUMANIDADE VENCE A FRIEZA


Aquele hospital perdeu o sossego depois que Dona Maria deu entrada, com graves complicações pulmonares, renais e hepáticas, todas advindas de um antigo problema no coração. Tinha o coração grande. Além da grandeza humana e afetiva, com que criou os nove filhos e um neto, havia o inchaço do músculo, precisamente, gerado pela angina.
Pois bem; os dez filhos – contando o neto criado por ela e pelo menos quinze dos vinte e dois e o bisneto que deixou – montaram plantão no corredor que leva tanto para a UTI quanto para a tal sala amarela. Dona Maria ora estava em uma, ora estava em outra, até o momento em que não suportou e foi ocupar, onde ninguém sabe um espaço muito melhor. Foi descansar das agruras que sofreu no que chamamos de vida, onde mesmo assim foi feliz, por ter simplesmente criado os filhos. Pouco antes de ir para o hospital os reuniu e fez a declaração. Disse que tinha muito orgulho dos mesmos, que eles eram exatamente como ela sempre quisera, e ainda cometeu o absurdo de lhes pedir perdão, como sempre fazia pelos anos de privações que passaram juntos, até que todos foram criados... E bem criados.
No início da internação, recepcionistas, médicos, enfermeiros, assistente social e especialmente os guardas chegaram a ficar impacientes. Era um vai e vem interminável. Uma falação intermitente. Uma imploração exaustiva a que os deixassem vê-la. O nome Maria jamais fora tão adequado à paciente quanto naqueles últimos dias de sua existência física. Já não eram filhos e netos. Eram fiéis em constante romaria. Invadiam o corredor e a cada momento um deles conseguia ver a paciente, sendo ou não horário de visitas. Quase sempre um guarda ia lá dentro e conseguia uma permissão: “Vai um só; bem rápido”. Iam dois ou três, e só saíam quando chamados. Quando não era um guarda, uma enfermeira ou a assistente social, às vezes o próprio médico, cercado no corredor, acabava por ceder e alguém entrava. Na UTI ou na sala amarela, tanto fazia. Acabavam por entrar.
Depois do segundo dia, ninguém tinha mais ânimo para expulsar a turma do corredor nem para explicar por que não podiam entrar em determinadas horas. Com paciência e humanidade, pediam que só esperassem entre um procedimento e outro, onde Dona Maria estava, para novas visitas relâmpago. 
Depois que a paciente morreu a comoção não foi somente na família. Houve comoção também no hospital, porque os funcionários acabaram vivendo um pouco, a dor daqueles filhos e netos tão extremados no amor por aquela mulherinha franzina, de pouco mais de um metro e meio de altura. Estavam sinceramente condoídos, e até mesmo para a família foi uma comoção a mais, perceberem a quebra de frieza e profissionalismo que promoveram naquele ambiente acostumado à rotina de sofrimento. Por isso mesmo, marcado pela impessoalidade exigida de seus servidores, em nome da fluência normal dos expedientes.
No fim das contas, percebeu-se que a experiência dos médicos daquela unidade apontava desde o início para o destino de Dona Maria. Eles fizeram tudo o que podiam, com os poucos recursos de que dispõem, sem terem conseguido vaga em nenhum hospital de maior porte. A família também tentou, até por meio judicial, mas nem a justiça conseguiu vencer o caos politicoadministrativo da saúde pública e dar uma chance a mais de salvamento para aquela vida.
O que restou, além do pranto e a saudade naqueles corações foi a gratidão da família que viu um ente querido ser tratado com dignidade, carinho e respeito numa unidade pública de saúde. O espanto, ou encanto, é porque isso não é normal. Aliás, é raro no serviço público de qualquer natureza, onde imperam a má vontade, a incompetência e a falta de solidariedade.

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