segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

LEMBRANÇAS DE ZD

Hoje acordei pensando no ZD. O pastor Zózimo Duval, que no crepúsculo de minha adolescência já somava quase oitenta anos de idade, foi meu grande salvador social. ZD me acolheu assim que cheguei a Piabetá, contrariando os temores de muitos fieis de sua igreja, que me viam como perdido irrecuperável. Hoje reconheço que frequentei o templo batista pastoreado por ele não por ter me convertido ao evangelho, e sim, para ficar próximo daquele homem que me tratou com amor, admiração, igualdade, além de ter me levado para o meio de sua família como se fosse um novo membro; talvez um filho recém descoberto. Perspicaz, meu amigo fez de tudo para não me batizar imediatamente na sua igreja. Protelou o quanto pôde, por meses e meses, até que minha insistência o venceu.
ZD era um homem carrancudo. Estava quase sempre de semblante fechado, mas tive o privilégio de fazê-lo sorrir algumas vezes e me dei de presente um dos mais belos sorrisos que já vi até hoje. ZD sorria como criança, quando se permitia. Era um sorriso acanhado, sem querer, mas que se abria lentamente até iluminar todo o rosto em forma de confissão feliz. E o meu amigo era feliz. O seu semblante era casca ou proteção, pois ele amava com muita facilidade, o que o fazia sofrer constantemente com os adeuses normais e muitas vezes precoces de quem chegava e saía de sua vida.
Confesso que não recordo como o conheci, mas fui acolhido por ZD assim que cheguei a Piabetá. O templo de sua Igreja Batista, na Rua Brasil, tinha no segundo piso um pequeno quarto abarrotado de livros e uma cama. Sabedor de que eu trabalhava durante o dia, mas não tinha lugar fixo para ficar à noite, ZD ignorou o perigo de oferecer guarida a um estranho, desafiou os membros da igreja, que o criticaram por isso, e me ofereceu aquele cômodo como local fixo para dormir. Com o tempo, acabei por conhecer outras pessoas que ZD acolhia, de uma forma ou outra, sendo igualmente criticado pelos pregadores meramente verbais do amor, que não amam na prática nem aceitam que outras pessoas o façam, pois isso as expõe; desmascara; flagra; denuncia.
Não havia nada em ZD, que o identificasse como um desses pastores evangélicos que cruzam nossos caminhos a qualquer hora. Embora bastante culto, ele não ostentava sua cultura. Tinha princípios rígidos de moral, mas não era moralista; não julgava pelas aparências, pelas condições sociais, e tinha sempre um cuidado extremo para não ser injusto nem preconceituoso em suas opiniões. Vestia-se como roceiro, falava com sotaque de roça, seu veículo era uma velha bicicleta e seus maiores amigos oscilavam entre pessoas modestas e indigentes. Amigo do “Biscoito” (um ex-combatente bêbado e malcheiroso), da Dona Brasilina (uma senhora que vivia numa velha casa cheia de porcos) e do Bareta (um homem também bêbado e de memória confusa), ZD me deu a alegria de pertencer ao seu rol de amizades e de permitir que a nossa amizade crescesse tanto. Foi assim que passei a chamá-lo de ZD, a compartilhar de seus momentos mais pessoais e a conversar com ele como se eu fosse um adulto... Às vezes, como se ele fosse um adolescente.
Menino “órfão de pai vivo” desde os oito anos de idade, amei aquele homem como a um pai. Não um pai qualquer, mas aquele que todas as pessoas gostariam de ter. Quando ZD morreu, foi como se o chão me faltasse, tal foi o meu desespero. Sofri mais ainda, por não poder sofrer; pelo compromisso de não deixar transparecer que sofria tanto quanto seus filhos e netos, que o amavam também com devoção.
Hoje me alegra ver de quando em vez aqueles filhos e netos do ZD, com os quais tive maior estreitamento. São pessoas que levam na expressão um pouco do seu semblante; nos gestos, um pouco dos trejeitos; nas palavras, um “tiquinho” do sotaque arrastado que meus ouvidos amavam receber nas longas conversas que ainda não sei onde achavam tanto assunto. Só sei que se tratava dos meus melhores momentos naqueles anos de muitas carências afetivas e busca intensa de autoestima.
Foram três, os pastores evangélicos incomuns que atravessaram meu caminho, e se dependesse de seus exemplos eu hoje seria um cristão convicto. São eles o ZD, o Sebastião Alfredo dos Santos e o Nivaldino Bastos. Cada um a seu tempo, todos me salvaram, de alguma forma, fazendo-me sentir pessoa; cidadão; alguém. Apontaram-me caminhos dos quais não me desviei mesmo depois de me afastar da cristandade. E o ZD, além de me salvar das mesmas formas, também me livrou da sina de crescer sem ter a mínima ideia do que é ter um pai de verdade. Na sua melhor concepção.

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