quinta-feira, 29 de novembro de 2012

A CHAGA DO JÔ


Um descuido na pedalada que deu na bicicleta com a qual trabalhava fazendo entregas pela cidade de Magé fez a canela do Jô atritar com a ponta do pedal e abrir uma pequena ferida. Nessa época morávamos no bairro Vila Olímpia, que hoje pertence à cidade de Guapimirim. O Jô trabalhava para uma pequena mercearia e parecia gostar. Era se não me engano, seu primeiro trabalho diferente de vender bolinhos e picolés nas ruas ou balas nos vagões de trens, de onde várias foi vezes levado à FUNABEM, pelos guardas da ferrovia. Nossa mãe, que sempre pedia para ele não voltar aos trens, tinha que deixar todos os afazeres e ir buscá-lo, munida de nove certidões de nascimento para sensibilizar os atendentes da instituição, que nas últimas vezes não queriam mais soltá-lo, e só o fizeram mediante apelos maternos exagerados e a promessa de que, se fosse preciso, amarraria o Jô. Era difícil, porque meu irmão mais velho crescera muito, ficara muito alto, já parecia um adulto e tomou gosto pelas aventuras na ferrovia: Correr dos guardas, fazer amizade com os meninos infratores – para “tirar uma onda” e até se juntar a esses meninos em brigas de corriolas –. No mais, vender balas nos trens dava mais dinheiro; ele se sentia mais homem... Mas era proibido.
Voltemos à pequena ferida pelo descuido na bicicleta: Os cuidados comuns, como higienização e curativos caseiros não funcionaram. A ferida cresceu. Já preocupada, nossa mãe procurou um posto de saúde, aonde o Jô ia sistematicamente para tratar daquilo. Mas, estranhamente, a ferida continuou crescendo. Passaram-se meses, e ficou resolvido que naquele posto de saúde ninguém estava sabendo cuidar do Jô. O próximo passo foi um hospital, onde se verificou que a ferida não só estava enorme, como também estava profunda e já tinha larvas. O procedimento quase diário dos enfermeiros, sob supervisão médica, era retirar as larvas, lavar a ferida com água oxigenada, logo depois aplicar mercúrio e outros remédios, para cobrir com gaze. Um ritual que durou pelo menos mais três meses. Depois desse tempo, a constatação: Tudo piorou. Ninguém mais sabia o que fazer pelo nosso irmão, que chegou ao desespero e começou a procurar a cura em sessões de umbanda. Chegou a fazer ebós, na tentativa de agradar aos supostos espíritos algum dia ofendidos por ele, conforme foi informado em uma dessas sessões. Por causa dessa informação, o Jô recordou que um dia, com a minha ajuda e a de alguns colegas, vandalizou um ebó numa encruzilhada próxima de nossa casa, quando morávamos em Vila Olímpia. 
Nada... Nada... Nada... Sua ferida crescia e se aprofundava. Foram dois anos de grande agonia e medo de perder a perna, pois um médico já dissera que talvez fosse a única solução. Pouco tempo depois, voltamos a morar em Santa Dalila, primeiro lugar onde moramos ao chegarmos de Brasília, quando nossa mãe resolveu sair de lá por causa da violência e da infidelidade do nosso pai. O lado do qual morávamos não tinha nem luz. A nossa iluminação não era nem à base de vela, e sim, de lamparina. Em todo aquele lugar não havia (como não há, depois de tantos anos) mercado, farmácia nem hospital, evidentemente. Mas do outro lado da estrada existia uma pracinha e pelo menos luz elétrica, nas poucas casas e um pequeno templo evangélico. Naquele meio existia uma casinha; minúscula, mesmo, que servia como pretenso posto de saúde. Pretenso, porque não tinha médico nem enfermeiro. Apenas uma senhora semi-analfabeta, que atendia como auxiliar de enfermagem. Era uma senhora negra, simpática e sorridente, além de grandalhona. Falava muito, e até um pouco errado, com aquele sotaque forte, mas que sempre achei agradável, de pessoa da roça. Na verdade, um sotaque parecido com o meu, que só é bem menos acentuado.
Formidável surpresa: Dona Dionísia, embora não sendo enfermeira, talvez nem mesmo auxiliar, tinha muita vivência e uma perspicácia rara nos profissionais de saúde que atualmente conhecemos. Meio desconfiados e sem ânimo, lá se foram nossa mãe e o Jô, para mais uma tentativa. “Não custava nada, né?”. Pois bem: Dona Dionísia segurou sem medo e nojo, a perna do Jô: Olhou bem a ferida, sem fazer trejeitos, depois mirou com firmeza os olhos de meu irmão, e disse: “Ói; meu filho; você deve sê alérgico a alguma coisa que tão botando em sua perna. O que vô, fazer, e não sei se vai dar certo, é tirar algumas coisas e botar outras. Você confia em mim?”. Confiaram. Como não confiar em alguém tão seguro, taxativo e sincero? Mais uma vez, a esperança estava no ar. Ainda não exatamente no coração, mas no ar. Aos poucos, ela voltaria para dentro, para o lugar de praxe, que deve ser ocupado no ser humano. E assim, mãe e filho se prepararam para mais uns meses de peregrinação ao posto de Santa Dalila. Tentativa derradeira. O possível próximo passo não seria outro senão a rendição ao médico acomodado que talvez gostasse de cortar pernas. 
Não houve meses de peregrinação. Em menos de duas semanas Dona Dionísia descobriu que o excesso de água oxigenada estava decompondo a carne em torno da ferida, fazendo-a crescer. As larvas nasciam disso e comiam a carne decomposta. Dona Dionísia também descobriu que o Jô era alérgico a mercúrio. Substituiu a água oxigenada por sabão de coco, eliminou o mercúrio e outros medicamentos que julgava excessivos e desnecessários e determinou: “Duas veis por mês vocês vêm aqui só pra eu vê como vão as coisa. Leva esse rolo de gaze, esses negocinho aqui, e compra sabão de coco. Três veis por dia você vai lavar bem a ferida, usando sabão de coco, enrolar o gaze, e pelo amor de Deus, meu filho; nenhuma sujeira nesse local!”. Com a esperança já instalada no coração, o Jô seguiu as recomendações e com menos de quatro meses a perna só tinha uma cicatriz... Uma cicatriz que até hoje é vista, quando a perna está exposta. Tudo não passou de um sofrimento sem sentido, por causa da falta de compromisso com o próximo, por parte dos profissionais que até então eram procurados. Todos tinham preguiça, má vontade, acomodação profissional, e, sobretudo, nenhum compromisso com o ser humano.
Aquela cicatriz que ainda existe, não é a única que o Jô carrega. Muitas outras estão por dentro e pairam nas lembranças de nossa infância; nossa adolescência. Todos nós carregamos muitas cicatrizes de uma história da qual às vezes queremos duvidar, quando a recordamos nos pormenores. O Jô, entretanto, foi quem mais sentiu nos ombros o peso dessa história e foi o que mais tomou para si a responsabilidade de se pôr ao lado de nossa mãe na luta pela sobrevivência de toda a família. Houve fases em que a nossa mãe, por mais que corresse de uma casa para outra, fazendo intermináveis diárias para nos manter, não teria conseguido sozinha. Sem nosso irmão mais velho. Eu tinha minhas virações, mas obedecia aos limites do meu corpo e aos limites impostos pelos moleques mais velhos, os marmanjos infiltrados e temidos nas ruas. Jamais corri todos os riscos necessários à ousadia para vender mais e conquistar os espaços que só eram viáveis para os que não mediam as consequências e não aceitavam que alguém lhes dissesse que aquela rua ou praça, que aquele prédio público, trem, rodoviária ou ônibus era seu.
Devemos muito ao Jô. Todos nós. E nas longas conversas que sempre tive com nossa mãe, depois do início da minha maturidade, ela sempre recordava muitas aventuras, o sofrimento, a vitória sobre a fome, as doenças e tudo o mais. Naquelas conversas, eu sempre vi que seus olhos brilhavam de gratidão quando ela falava das loucuras que o Jô fez, em nome do não que sempre disse às dores daqueles anos... Cicatrizes... Da ferida na perna, das feridas em nossos corações, dos nossos anos mais verdes, e a cicatriz da saudade; a falta que nossa mãe nos faz... Mas ela nos fez felizes. Ensinou-nos a superar. A sobreviver. A sair do poço mais fundo que se apresente. Soube nos prover de valores essenciais ao ser humano, como a honestidade, o trabalho e a não desistência. Somos felizes, porque acima de tudo, fomos nós que tivemos a riqueza e honra de sermos filhos de nossa mãe.

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