quinta-feira, 29 de novembro de 2012

VADO RENASCENTE


O Vado era bem pequeno quando contraiu uma doença que eu nunca soube qual foi. Só recordo que ele ficou extremamente abatido. Esquálido. Esquelético. Não comia quase nada, e sempre que o fazia, vomitava. Também não queria ingerir água ou suco. Ficou assim durante meses, e os médicos não o internavam. Diziam que não havia o que fazer, e assim sendo, era melhor ele ficar em casa; terminar seus dias com a família. 
Por essa e outras razões, estávamos na pior fase dos piores anos de nossas vidas. Os remédios, todos eles muito caros, eram comprados porque nossa mãe conseguiu sensibilizar os membros de uma igreja, que resolveram ajudar com os recursos dos dízimos e ofertas. Todo o dinheiro que recebia tanto da igreja quanto de suas diárias em casas de famílias, nossa mãe gastava com os tais remédios e com vitaminas para que o Vado se mantivesse lúcido e de pé. Criada por pais evangélicos fervorosos, foram muitas as vezes em que orou pedindo ao seu Deus que o nosso irmão fosse curado. 
Um dia, crendo que suas orações não eram atendidas por ela estar afastada de sua igreja e por isso não ter crédito junto a Deus, nossa mãe pediu ao Nem, que também era pequenino, apenas um pouco maior do que o Vado, para fazer uma oração. Ela simplesmente apostava na pureza do pedido de uma criança, para pegar Deus de surpresa, vencido pela emoção. Comovido e sem ter como negar. Tratava-se de uma armadilha desesperada, e Deus haveria de cair, se fosse mesmo tão bom. 
Na madrugada do mesmo dia, o Vado ficou com febre muito alta. Bem mais alta que de costume. Começou a delirar, e com a cabeça no colo de nossa mãe, disse que umas crianças o chamavam para brincar na parte externa do telhado da casa. Perguntou, em seguida, se podia ir. Crendo que se tratava não de um delírio, e sim, de anjos que chamavam nosso irmão para o céu, no qual sempre acreditou, nossa mãe, aos prantos, achou melhor assentir: Disse que sim. Que ele podia brincar com os “anjos”, o que para ela, significava o fim do sofrimento do Vado, que já não suportava. Também entendeu aquilo como castigo, e se resignou, por ter achado que podia driblar os desígnios divinos.
Fomos todos acordados para chorar por nosso irmão, cujos olhos fecharam, cuja respiração já não era sentida por nós. Nossa mãe o segurava em silêncio, deixando que as lágrimas escorressem rosto abaixo, mas não esboçou revolta. Todos juntos, atordoados, não pensamos em tomar providências, e com isso, as horas foram passando. Voltamos a cochilar em redor do Vado, e nem notamos o dia, quando amanheceu.
Aquela nova manhã pegou a todos de surpresa: Despertamos do cochilo, talvez da hipnose, com a Voz do Vado, ainda fraca, pedindo comida, o que nunca mais fizera. Ao mesmo tempo, ele se levantou já sem febre, para beber água, o que também não fizera por muito tempo. Ficamos pasmos e felizes, mas temerosos, pois era difícil de acreditar que aquilo acontecia, depois do estado no qual vimos nosso irmão caçula.
Em poucos dias o Vado estava recuperado, sem qualquer explicação para mim. Muitos, com a razão que reconheço e admiro, por tudo em que acreditam, atribuem o episódio a uma resposta divina. Especialmente minha mãe, enquanto viveu acreditou nisso, e sempre a ouvi com respeito e reverência, quando relembrava tudo aquilo e dizia, já sem temor de ser castigada, que seu Deus teve piedade do sofrimento de todos e não suportou as lágrimas e a súplica de uma criança.
Seja lá o que for, no campo da ciência, da natureza, da metafísica ou do surreal, que tenha interferido para o que ocorreu, para mim não importa. Só sei que me sinto feliz por terem passado aqueles anos em que todos nós, cada um a seu tempo, escapamos da morte ao menos uma vez: Por inanição, doença, preconceito alheio, perseguição, rebeldia extrema, manifestações perigosas de revolta e outras razões.
Sabendo que nada sei sobre o que não vejo, e por isso não descarto a hipótese de um dia crer no que hoje não creio, tenho apenas uma certeza: Sou muito grato não sei a quem ou quê, pelos muitos anos de convivência com os meus irmãos, hoje todos vivos, e com a nossa mãe, que há pouco tempo se foi, não sem antes nos ensinar que a vida é um bem precioso e que o amor é capaz de nos dar forças para sobreviver ao que nem sabemos mensurar.
Aos meus irmãos, todos eles, minha gratidão por ainda estarem comigo... Graças ao que não sei, mas isso não importa. Se houver o que saber, saberei no tempo certo, que poderá não ser aqui.

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