sábado, 18 de fevereiro de 2012

MOSAICOS


A criança perdeu o olho esquerdo. Aparece na foto com um sorriso incentivado pela mãe, que o abraça também sorrindo – por uma heróica resignação –, dando exemplo de superação e otimismo. Seu depoimento é de que depois de mais algumas sessões de quimioterapia o câncer será totalmente extirpado, eliminando o risco de morte e de perda, pelo menos total, da outra vista. Vai-se o olho, fica a vida. É a máxima de uma mãe esperançosa, que vem comendo o pão que o diabo de um erro médico amassou, quando o moço de branco disse que o “probleminha” era, talvez, o início de uma catarata, mas que o melhor mesmo era esperar mais um tempo para que tivesse certeza.
Veio a certeza de que não era a catarata, quando a mãe acordou da preguiça daquele médico e resolveu procurar outro. Fez isso em tempo de salvar a vida do menino, mas não em tempo de salvar seu olho. O mais foram tempos de sofrimento, incerteza, revolta e fé (pois ela remove montanhas. Remove até o globo terrestre. Só não foi possível fazer com que o globo ocular do garoto amargo e sorridente não fosse removido com todo o resto). Uma falha dessa virtude apregoada para que o ser humano supere a si mesmo, com isto superando os problemas, as angústias e os desenganos, brincando de ser feliz com o que “Deus” lhe deu para viver como pode.
Minha mente fotografa a foto do jornal. Meu coração a revela para toda a alma, e não consigo deletar essa imagem que deveria me alegrar, pois define uma vitória irrefutável. Sei que todos os que rodeiam a criança triste, de um olho só, estão dando graças aos céus pela cura. Uma cura que não poupou o rosto agora cavado, com um brilho a menos, um complexo a mais, a certeza de que o crime da displicência daquele médico será sempre relembrado em frente ao espelho implacável, que não deixa os egos mentirem. Cairá sempre por terra toda a gratidão encenada para o mundo, com o apoio dos que o amam, por isso o querem sorrindo (com os lábios e com o olho restante).
Ainda assim, celebremos a sobrevivência. A vida está cheia de compensações que não substituem a perda de um órgão, nem de um sentido, mas dão sentido à caminhada. Vale sempre a pena buscar o melhor das alegrias possíveis, da felicidade adaptada, de tudo que há para colar os cacos de uma vida que se quebrou em algum momento. Viver é isso, e podemos ter certeza de quem ninguém atravessa uma existência sem grandes perdas, tombos inesquecíveis, “estilhaçamentos”.  Todo ser humano é um mosaico, e muitas vezes há cacos irrecuperáveis. Aqueles de quando somos “quebrados” por médicos, educadores, motoristas, políticos, policiais e juristas irresponsáveis.  

Nenhum comentário:

Postar um comentário